terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Crónica | Há que massagear a reputação

Nas relações humanas há muito com que aprender. Se quisermos, a própria passagem das pessoas pela humanidade não é senão uma constante exposição a circunstâncias de aprendizado. Aprendemos na própria pele ou de ouvir e/ou ler as experiências de outras pessoas (aquilo que as ciências consideram experiência vicária).

A humanidade prontamente estabeleceu preceitos, estereótipos, enfim, critérios, justo ou injustos, para compreender (ou excluir) pessoas em função das características com que reagem a estímulos idênticos. E naturalmente haverá aqueles cuja paz de espírito reside em encaixar-se no “pacote dos bons”, não importa o quanto custe isto em termos de autenticidade. Há que massagear a reputação. É certo que alguns meios e agentes de socialização estimulam essa quase dupla personalidade, na medida em que aparentar ser assertivo funciona como sinal de identidade e pertença. O seio familiar (na sua dimensão alargada) é outro incentivador de aparências, principalmente porque, naquele saudável manto de afectos, os nossos continuarão sendo aquelas crianças ternas e virtuosas. Daí que se fale em pais e mães galinhas e toda uma série de favoritismos (míopes).

Ganhei noção disso de maneira relativamente cruel, ainda adolescente, num episódio vivido em casa. Num belo dia, o meu pai levou-me de motorizada a ir comprar gasolina nas bombas da praça da Catumbela. Ele ia ao volante (nunca gostei de motorizadas. Da última vez que conduzi uma, o meu próprio irmão mais velho é que quase me obrigou a dar uma volta). Trouxemos os dois bidons de dez litros cada, cheios até à boca.

Deviam ser onze da manhã. Havia iluminação na despensa. O pai poisou um dos bidons para ganhar gravidade, inseriu uma ponta da mangueira e fazia a sucção com a boca para excitar o curso do transbordo. Eu estou a um metro e meio dele. Observar para aprender. A meio da operação ele engasga-se, retira bruscamente a mangueira da boca. Infelizmente, por mau jeito, entorna boa quantidade de gasolina no ouvido direito, a qual rapidamente penetrou o máximo que pôde. Armado em militar e bom em primeiros socorros, o velho não procurou um especialista em otorrinolaringologia. Deu só um jeitinho. Mais tarde aquilo veio a resultar numa infecção de meter medo, ficou de cama.

Para a surpresa minha, a narrativa montada já me envolvia. Era eu quem tinha entornado a gasolina no ouvido do pai, já sabes, esses miúdos são irresponsáveis. Lia-se mesmo a ira nos olhos de cada familiar que tomasse contacto com o relato da “vítima”. E com razão. Eu tinha lesado o herói (político e militar) da família, o provedor (vivia espalhando regalias, mesmo que em casa dormíssemos à fome) e a figura mais eloquente (em suas mãos e provérbios passava a resolução de todos os conflitos, mas só fora de portas, os de dentro continuavam latentes). A minha condenação não podia ser maior. Não tive espaço para me defender. Acho que a única pessoa que acreditou na minha versão foi a minha mãe. O mais triste é o pai ter morrido sem nunca revelar a VERDADE sobre o episódio.

A vida ensinou-me cedo que o angolano tem na dificuldade de reconhecer os seus erros uma tendência congénita. Relativiza ou transfere-os à incompreensão de outrem. Porquê? Porque na relação de alteridade, temos uma sociedade com uma mentalidade punitiva, o que pode dever-se à herança religiosa tradicional ou à ideologia marxista. Sabe melhor termos a razão, cai bem sermos a vítima. Ainda era só isso. Obrigado. 
Gociante Patissa | Benguela, 16 Janeiro 2018 | www.angodebates.blogspot.com
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