quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Conto | A praga do sonho

Era uma vez uma terriola perdida nos intestinos do mapa de Angola e que vivia e prosperava à sua medida. Digamos, antes, à medida das suas regras de base rural, numa harmonia entre os habitantes, o meio e os recursos.

Buscavam sustento na natureza e a ela devolviam esperanças em forma de fertilizantes. Ah, e não era tudo! Alguns rituais tradicionais africanos consistiam em partilhar com o chão determinadas regalias. Era disso exemplo o meio copo de aguardente entornado ao solo para encerrar sessões de resolução de conflitos, o que simboliza dar de beber aos antepassados que testemunham o evento por meio do seu espírito e da sabedoria legada.

Práticas a coabitar (com ou sem conflito ideológico) com a capelinha ali plantada pelo então braço do regime colonial, a igreja católica romana. Coisa de ver uma autoridade tradicional em simultâneo no papel de catequista, bíblia a tiracolo e na cintura as mixórdias de manutenção do trono. A divisão social de papéis problema seria não. Depois de desmatar e desbravar propriedades para cultivo, a parte mais pesada, a lavoura, de sequeiro, ficava para a esfera feminina. Os machos da aldeia, estes talhados a bravos, conforme a lei sazonal, organizavam queimadas com fins de caça silvestre.

Quando o caudal assim permitisse, a aldeia toda unia-se em animada campanha de triturar uma espécie botânica, improvisar diques e embebedar o peixe. Uma festa! Mas tanto a caça como a pesca não passavam de iguarias esporádicas e destinadas ao prato. Não davam excedentes. Os caminhos para a “Venda”, como se designava a cantina de produtos industriais, passavam mesmo por meses de curvar a coluna ao ritmo da enxada ao sol.

E parece fazer sentido dizer-se “venda”, a julgar pela exploração reinante na bitola da permuta. Um quilograma de sal podia custar cinco de milho ou três de ginguba (amendoins). De lá voltavam a resmungar por tanto produto deixado para tão pouco, uma procissão da qual entretanto eram dependentes crónicos. O branco não arrancava ninguém de casa para o submeter aos seus preços de diabo, logo não lhes podia vestir os remorsos (quem não quisesse era só caminhar várias centenas de quilómetros ao encontro de balcões eventualmente mais generosos, se é que os houvesse).

E quando a colheita farta fosse, os homens, muitos deles a triplicar porque maridos de lares vários, davam-se ao luxo de menosprezar os garrafões de kaporroto (aguardente de produção artesanal) que sempre consumiram a preço de tomate. Mandavam vir da loja garrafões de vinho tinto, importado de cidades que nunca viram nem em fotografias. E no final aterravam, babavam e libertavam as suas necessidades nas calças do mesmo jeito. Às mulheres, o sacrossanto emblema, é que não se via com muitos bons olhos o direito de se deixar beber ao ponto do coma. Restavam como reserva moral, embora secundário. Eram estas que faziam o trajecto à loja quando os maridos de rastos andassem.

Uma delas chega certa vez ao marido e pede para não mais ser enviada à loja. O marido estranha um tal pedido. A ela cabia obedecer, a menos que entendesse afrontar quem por acaso tinha assegurado os dotes que o habilitam a ser titular da mulher. Ela, austera em argumentos, disse apenas que não gostara do ambiente da loja, que tinha sonhado com as montras. O marido ficou apreensivo por uns instantes. Naquele meio, sonhar era mau presságio. Surgir-nos alguém num sonho não positivamente decifrável era razão bastante para madrugar à porta do visado e rogar todas as pragas a plenos pulmões. Mas andaria o tuga da cantina envolvido em feitiçarias? Não podia acreditar!

À mulher não restou outra saída para demover o marido. Foi então lamentar-se aos pais e aos sogros do desgosto que via nas idas à cantina. Em vão. E os meses foram desfilando, ela sempre intransigente. Agora, até, havia um motivo forte. Estava grávida e precisava de proteger o bebé, cujo sexo era uma incógnita (não havia ecografias na época). O marido, só e apenas por conta do bebé a caminho, acabaria por ceder. Mas a paz só durou até ao nascimento do bebé e o escandalizar das famílias, catanas e mocas à mão. Porquê?

Os receios confirmavam-se. De tanto ver bonecas caucasianas na montra, ela acabava de dar à luz um bebé mulato. Culpa do marido! Tivesse ele ouvido os sonhos da mulher…

(adaptação)

Gociante Patissa | Benguela, 17 Janeiro 2018 | www.angodebates.blogspot.com
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