sábado, 9 de dezembro de 2017

Curiosidades e memórias da AJS (13) | A PROBLEMÁTICA 1.ª VIATURA DA AJS, UM TESTE À HONRA DA ONG JÁ ANTES DA DOAÇÃO

Tem-se dito que na arte de coleccionar relíquias, o valor alto que é pago não é pelo artigo como tal, mas sim pela história em torno dele. Diremos, adaptando a asserção, que o valor da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade) é para nós fundamentalmente imaterial, um afecto que de resto, dada a natureza humana, nem sempre resulta transmissível. No apontamento de hoje, o assunto é a viatura Toyota Land Cruiser Prado (“chefe máquina”), o primeiro (único até ao momento) zero quilómetros na história da AJS e o que nos custou a sua obtenção.


A história começa em finais de 2003, princípios de 2004, quando recebemos por intermédio da D. Manuela Costa a manifestação de intenção de uma consultora independente chamada Susan Dow, residente em Luanda. A D. Manuela, na ocasião Oficial de Projecto da ONG Omunga, trabalhara com Susan por muito tempo na britânica Save The Children. Havia em carteira um projecto no sector da educação cuja materialização passava por estabelecer parceria com uma ONG nacional de boa reputação. A AJS foi a escolhida.

Algum tempo depois veio a Susan. Lançou as bases e adoptamos a ideia projectual. O projecto em causa, que compreendia uma pesquisa para identificar as linhas de base para posterior intervenção no reforço de capacidades de pais/encarregados de educação, assim como de professores no ensino primário, seria co-implementado pela Education Action International (EAI), em português, Acção Internacional para a Educação, com sede em Londres, a também cidade dos doadores, entre eles o Comic Relief.

O município do Bocoio seria o grupo alvo, em virtude de já lá termos realizado alguns debates e workshops, sem esquecer a excursão marcante no ano de 2004, no contexto do 27 de Julho, data de fundação da antiga Vila Sousa Lara, em parceria com o “Pelotão”, colectivo informal recreativo do bairro Santa Cruz. Só que, durante as visitas de campo e encontros com as autoridades, numa delas com a presença da britânica Mandy, quadro sénior da EAI, ficou-se a saber que o CCF (Fundo Cristão para a Infância) também tinha projectos na área da educação, o que suscitaria duplicidade. Foi então que se optou pelo município do Caimbambo.

Originalmente, a parte angolana de implementadores incluía o Sinprof, pelo seu incontornável papel sindical na influência de políticas públicas e domínio de dossiês importantes na relação entre o professorado e a entidade patronal. Numa altura em que o desenho do projecto estava consolidado, recebemos uma delegação de alto nível, constituída por gestores da EAI e das instituições doadoras, para aquela monitoria inicial. Viajamos para o Caimbambo onde nos desdobramos em encontros com as autoridades, professores, sindicalistas e com a comunidade. O que os britânicos não gostaram foi da crispação entre o sindicalista e o então Chefe de Secção de Educação do município, do qual se inferia um antecedente mal resolvido. No final do dia concluíram que o perfil não condizia com o espírito do projecto, cuja estratégia passava por estabelecer uma relação de cooperação metodológica nos dois primeiros anos e só mais tarde a advocacia.

E quando por questões de transparência foi apresentada a proposta de projecto ao então Administrador Municipal, ficou-nos, pois, alguma má impressão dele. Em posse do documento, correu para o orçamento e solicitou que o carro (ainda não encomendado) viesse a ser propriedade da sua administração, finda a iniciativa. Diplomaticamente foi-lhe negado. O carro deveria servir para uma possível extensão das actividades.

De volta ao hotel Turimar, indisfarçável era o rosto desiludido dos decisores vindos da Europa. Bem, sem surpresas. Tinham passado metade do dia a fazer observações de nariz contorcido e fotografias, tais eram a condição de extrema pobreza material e o calor do armazém em que funcionava o nosso escritório. Maior ainda foi o impacto ao se depararem com as condições infra-higiénicas do WC que usávamos por empréstimo. Com nove anos de história, era aquela a nossa condição, não havia como maquilhá-la. Reunidos no restaurante, pediram-nos para aguardar enquanto provavelmente “puxavam as orelhas" à D. Susan. No relógio, 18h30.

Perto das 21h00 chamaram-nos aos suspiros para anunciar reformas notáveis na estrutura do projecto. Faltava-lhes coragem para verbalizar a insegurança que tinham da nossa idoneidade e carácter, pois podíamos muito bem, pobres que éramos, agarrar na primeira tranche do orçamento e fugir com a massa. A outra imposição foi no sentido de incluir a Okutiuka na liderança do projecto. E perguntaram-nos o que achávamos, receosos de uma atitude radical nossa. Respondemos, cordialmente, que o mais importante era a implementação do projecto, independentemente de quem lideraria o processo. Olharam-se uns para os outros, depois olharam para nós com alguma empatia e orgulho. Disseram que a nossa atitude tinha sido bastante saudável, que lideraríamos nós o projecto na mesma, sendo entretanto indispensável a entrada da Okutiuka (que tinha antecedentes positivos no Caimbambo e até um representante de nome Açores).

Com o arranque do projecto, era finalmente comprada a viatura ao preço de USD 35 mil e começavam as complicações e tensões, inicialmente na relação da AJS com o mundo externo. A “madrinha” Susan receava, pela nossa idade juvenil passível de vícios anti-éticos e abusos dos meios para fins pessoais, que se repetisse o trauma de uma ONG que apadrinhara no passado, a qual alegadamente partiu o carro todo antes da primeira revisão. Para o conforto dela, naquela altura (2005) os membros da AJS ainda não tinham carta de condução, pelo que os motoristas foram recrutados por via do seu crivo. Como não era de estranhar, contratou-se um antigo motorista da Save The Children que ela tinha em muito boa linha de conta.

A outra tensão latente reside no facto que prevalece até hoje, salvo melhor informação, de que a viatura, sendo nossa, foi comprada em nome da ONG irlandesa Ibis (sedeada no Kwanza Sul), congénere da EAI, como que uma espécie de semáforo para a recolha da viatura tão logo fossem registadas condutas contrárias ao voluntariado. Mas não é tudo. Outra exigência incontornável também era o seguro ENSA contra todos os riscos, um valor para já nada desprezível. Houve um momento em que quase nos pediram para conduzirmos a viatura ao Sumbe, desprovida que a tesouraria da AJS andava na sequência do fim do ciclo do projecto. Tivemos de pedir emprestado dinheiro a um dos membros para “salvar” o meio.

Pela sua história, o carro passou a ser uma questão de honra, como pessoas e para uma AJS comprometida com valores. Ironicamente, o tempo, e não foi preciso muito, veio a mostrar que a Susan não estava de todo errada. Lá houve quem não tolerasse reincidências, pioradas com a inexistência de um regulamento escrito, onde o bom senso já não servia como critério… e bateu com a porta. Ainda era só isso. Obrigado.
AJS – “Humildade, Justiça e Solidariedade”
Benguela, 9 Dezembro de 2017
Daniel Gociante Patissa (membro fundador)
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