segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Crónica | Caro compatriota João Lourenço, acabe só com isso, ya?...

Foto de autor não identificado
Cada vez que me tratam por doutor (o que por acaso não sou, mas também em nada mudaria se fosse), carrego a inevitável culpa de não poder – evitando ser deselegante – dispensar prontamente tal deferência. Ultimamente até nos noticiários, temos sujeitos com o título académico, principalmente quando detentores de cargos públicos, muitos dos quais arredondados por excesso, dado que, em termos concretos, não passam de uma licenciatura.

Aí, resta ao cidadão acrescer à pilha de "vergonhas colectivas " esta mania do elitismo. Por que raio tem de ser a frequência universitária parte da nossa identidade? O indivíduo faz uma chamada telefónica e tu ouves depois do pigarrear aquele "daqui fala o doutor não sei das quantas", e ficas a prever no outro lado da linha o emissor a endireitar o nó da gravata ou eventualmente a tirar o pó do bico do sapato, como se não atendesse às suas necessidades fisiológicas socorrendo-se dos mesmos órgãos sensoriais que os demais mortais. E aquelas cenas deprimentes então de estar aos copos em mesa de bar e nos tratarmos por doutor disto, engenheiro daquilo, arquitecto e bla, bla, bla?... O lugar da simplicidade qual é mesmo?

De que adianta a excessiva formalidade se, na realidade, muito do que você precisa no dia-a-dia é resolvido na relação com o país informal? Os exemplos estão à mão de semear. O doutor cai no radar por excesso de velocidade e… resolve no momento com o regulador de trânsito. Tem algum parente doente, recorre a influências para melhor assistência. É professor mas o poder de decisão no mais elementar, como a reprovação (ou não) do aluno ou aluna com fraco rendimento escolar, é condicionado pelo telefonema do degrau acima na hierarquia. E se nos preocupássemos mais, sob o ponto de vista da ética social, com o funcionamento eficaz das instituições ao invés de investir o tempo em categorizar indivíduos?

É que já trabalhei com alemães, belgas, quenianos, americanos, italianos, espanhóis, australianos, ingleses, franceses, etc., bwé de PhD, alguns até diplomados em universidades do topo do ranking mundial, e a prática é tratar a pessoa pelo nome, ou quando muito por senhor/senhora. A propósito de tendências que acabam por nos elevar ao patamar caricatural, recordo a troça de uma antiga amiga e tutora australiana, isso no sector das ONG’s por volta do ano de 2006, segundo a qual é fácil topar um angolano em voos internacionais. E como? Porque é o que mais se preocupa em se agrilhoar (termo meu) em fato e gravata (onde os demais procuram viajar em trajes casuais e mais confortáveis), mesmo quando a estação que os espera no país de destino é o verão.

A nossa comunicação social é outra promotora do vício, sobretudo no tratamento dado aos comentadores (residentes ou itinerantes, que por vezes também não acrescentam nada de novo ao senso-comum), o que indirectamente passa a mensagem de não haver sabedoria em quem não ostentar um grau universitário. As rádios e televisões em alguns países que visitei (EUA, Alemanha, etc.) apresentam os interlocutores pelo nome e função, no que se pode inferir que já se fartaram dos doutorismos, onde o acesso à universidade é um dever, não uma questão de luxo e/ou barreira social.

Aqui chegado, e não sendo ainda eu de andar a pedir favores a governantes (talvez tenha pedido alguma vez em pequeno na era do partido único e um ano antes do fim da guerra ao meu próprio pai, mas não me lembro), ou exceptuando a cedência de salas para lançamento de livros, já na condição de escriba, vejo-me neste contexto obrigado a abrir uma excepção. Portanto, caro compatriota João Lourenço (o "president to be", como diriam os anglófonos), faça-nos o favor de acabar com este "vazio interior" de esfregar o grau académico na cara da sociedade, ya? Ainda era só isso. Obrigado.

www.angodebates.blogspot.com | Gociante Patissa | Benguela, 25 Setembro 2017
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