segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Crónica | Onde andará a bússola?

No bairro em que me fiz homem, os homens, os mais jovens, os intermédios e os de meia-idade, eram muito dados a festas. Isolando aqui as de aniversário, mais intimistas, ressalto as dos grupos organizados. Várias por ano. O réveillon era o apogeu em princípios da década de 2000 no bairro da Santa Cruz, Lobito. As festas, cada igual à sua antecessora, terminavam da mesma forma. Com pedradas. Umas mais a dar mais para o verbal, outras no entanto físicas mesmo, feridas e tudo. Testemunhei muitas delas como fotógrafo, mas não só. Contavam-se aos dedos de uma mão – se caso as houvesse – aquelas que terminavam tal começassem, felizes. Era como se o guionista de todas elas fosse um só. Seguia-se a próxima estação do ciclo, o mesmo entusiasmo de campanha, a mesma socialização, mas, também, o fim já previsível. Brigas. Talvez por isso não tenha recebido com o júbilo esperado por parte do especialista que a idealizou, falo da associação das eleições angolanas com festa, no caso a «festa da democracia». O povo eleitor, este, não pôde mais do que papagaiar o slogan, mesmo aqueles que abominam a implicação semiológica do termo (quando não descambam pelas bebedices, as festas costumam pulverizar decibéis da poluição sonora). E saímos de casa sem traumas, provavelmente convencidos que, uma vez ocorrendo à luz do dia, seria uma matiné, do tipo sunset, inofensiva até para crianças. Votamos, pois. Serenos. Cidadãos, pacíficos e pacifistas. E depois? Volvidas pouco menos de duas semanas, vivemos dias que aconselham aquele «cala-te ou fala algo que valha mais do que o silêncio». Prudência parece ser o conceito mais transversal neste quadro. Mas é um silêncio que me vejo forçado a romper por imperativos de consciência, sob pena de hipotecar a voz. Sou um simples escritor sem pretensão alguma de distribuir sermões académicos, como nos habituaram os nossos prendados sofistas, legitimados pelo quilate de seus diplomas. Até porque em matéria de realização neste campo, define-me melhor o que não consegui ser. Na crónica que escrevi aqui no Blog Angodebates no passado mês de Março, confessei logo no título como «Não gosto de eleições». O parágrafo de abertura dizia o seguinte: «E chega aquela fase de usar camisinha nas palavras. Já vamos na quarta. Assim manda a democracia, sistema de governo que, entre nós, tende a captar holofotes pela tendência de se embrutecer na sua faceta dos ciclos eleitorais, pondo em risco importantes conquistas da coabitação e do próprio exercício da cidadania». E acresci: «Francamente não gosto eu é do pico do processo que leva às urnas, em função da agitação social, nem sempre saudável e de sequelas indeléveis. Se em política tudo (parece que) vale, sou entretanto adepto de que qualquer que seja o sistema vale muito mais pelo quanto aproxima do que divide famílias. (…) No final do dia era suposto tornarmos às nossas casas em paz. Adversários, mas juntos por um ideário maior: Angola». Ora, desenha-se para dentro de cinco anos a incontornável realização de mais uma «festa da democracia» quando ainda não sabemos como vai terminar o novelo presente. Fica claro que tudo se resume à disputa… afinal. Para haver festa, precisaríamos de estar irmanados num mesmo lado. É o contrário. De um lado os que tudo acusam, do outro os que tudo negam. E a cada dia, vamos para a cama sem fazer ideia da conferência de imprensa que nos vai acordar, qual delas a mais atlética. Bem ao ritmo da onda, vai renascendo a cluster de «experts» sobre Angola na media mundial, sem falar das peças negativas nas grandes agências noticiosas. Oh, prezados mais-velhos da classe política, onde andará a bússola do entendimento? E nisto a nossa história tem algo a dizer: quando aumenta o número de sábios lá fora, é porque está a faltar sabedoria cá dentro. Ainda era só isso. Obrigado.

Gociante Patissa | Benguela, 04 Setembro 2017 www.angodebates.blogspot.com
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