segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Crónica | As partidas do Eliseu

A pior das partidas que nos pode alguém chegado pregar é, certamente, partir.

Eliseu Mondi Pedro Figueiredo confunde-se com a língua inglesa, à qual viria a dedicar duas décadas de auto-didactismo, chegando a dar aulas no terceiro nível dos Bambus na Katombela, onde residia, e mais tarde no católico Instituto de Ciências Religiosas de Angola (ICRA), no bairro da Caponte, Lobito, onde veio a residir. O extrovertido, criativo e brincalhão Mr. Elisha (por si próprio pronunciado /elitsha/) abraçou o inglês por influência do irmão mais velho, dos poucos tradutores benguelenses no contexto de emergência, resultante do fracasso eleitoral de 1992, a época dourada da ONU e demais agências internacionais de caridade.

Já na sexta classe, dava o Eliseu nas vistas pelo vício das contagens em voz alta, qual récita a Shakespeare, pelos corredores da escola Comandante Dangereux, na Katombela. E pregava bwé de partidas aos colegas, eles que mal sabiam o que era o verbo «To Be». Mesmo já quando o conheci na sétima classe, onde começava o ensino de inglês antes de surgir essa coisa chamada reforma educativa, foi com o inevitável receio de lidar com ele, pois era reinante o espírito de competição entre os falantes. A empatia foi à primeira vista!

De carteira acabamos sendo colegas até ao primeiro ano do ensino médio, optando pelo curso de ciências sociais no Centro Pré -Universitário (PUNIV) do Lobito. O Eliseu pregaria outra partida a professores e alunos com uma suposta habilidade em conjugar o «To Be» na língua Umbundu, quando na verdade dizia o verbo defecar. E ria-se à brava, para o meu desgosto.

Estamos em 1996 e eu, que gozava já de certa notoriedade mediática por colaborar num programa infanto-juvenil da Televisão Pública de Angola, não via como continuar os estudos.

Como se não bastasse andar de ténis com a sola gasta ao ponto de o polegar beijar o chão, impunha-me o professor Barros um ultimato; não tolerava o bloco de facturas para os apontamentos do seu sagrado português. Só podia ser indisciplina, acreditava ele. Por seu turno, o professor Kupuiya, com quem me havia incompatibilizado pela imaturidade com que o corrigia em plena aula, decidira ser pai; isentou-me de pagar as folhas de prova de inglês. Como compensação, eu partilhava com ele jornais e livritos que me chegavam por correspondência. Mas… e as outras provas? Eram dez disciplinas, e o Eliseu teve a providencial ideia de custear boa parte delas. Financiava de vez em quando um lanche na cantina da professora Belinha. Ofertou-me também uma camisola lilás com a qual fui a tempo de fazer bonito na TV.

Bem, depois de o agradecer no meu livro de estreia, Consulado do Vazio, entendi metê-lo na primeira versão deste livro de crónicas, enquanto personagem de uma cena da vida real num texto que está lá mais para diante, que ele iria a tempo de ler se o salto entre o fim da escrita e a colheita em papel fosse menos elástico. Muito longe de imaginar que tivesse tão cedo de traçar esta outra crónica panegírica.

Julgava-se no direito de arranjar um emprego que prestigiasse a minha vocação e aptidão. Há dois meses, falou-me da oportunidade numa promissora multinacional japonesa no Huambo como tradutor e assessor de comunicação. Fiquei à espera de mais dados. E o Eliseu foi hoje a enterrar, derrotado por um estado de saúde que há muito titubeava. Ninguém faz ideia dos últimos suspiros do homem. Espero que tenham sido sob um sonho com diálogos em inglês. Seja como for, Eliseu, não te perdoo essa partida de partires!
Lobito, 9 Junho 2014

Gociante Patissa. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 56-57. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola . 2015 Colecção: «Sete Egos»
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(*) livro de crónicas disponível na Livraria Sucam e na Tabacaria Grilo, em Benguela, ou na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda, sita no Largo das Escolas. Mil Kwanzas o exemplar
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