terça-feira, 24 de maio de 2016

OS ABSURDOS DO PROFESSOR DE EVP (crónica do livro «O Apito Que Não Se Ouviu», edição União dos Escritores Angolanos. 2015, pág. 58), a pedido da mana Reinalda Tchimbali

A folha de prova era o único laboratório funcional que algumas escolas possuíam. Foi assim que a escolaridade de muitos de nós ficou marcada, fosse química, biologia ou física. Cheguei a conhecer permanganato de potássio, só de ver à distância, uma espécie de comprimido escuro. Para que serve? Olha, já nem me lembro. Serve mesmo para quê?!

Conheço pessoas que tiveram de nota final vinte valores, a máxima que o sistema de ensino prevê, em programação de computadores na década de 1990. Obtiveram ricas médias no certificado e na defesa da tese de conclusão de curso no Instituto Médio Industrial de Benguela, sem que tivessem chegado a um metro sequer do aparelho. Como digo, era só teoria, que tinha como campo de ensaio a folha de prova. Agora que penso nisso, noto que o meu fascínio com a palavra não é de agora (tal como não é de agora a minha estrondosa fraqueza em contas).


Bem, acontecia então, como não podia deixar de ser, agigantarmos o nosso campo léxico com vocábulos, uns mais agradáveis de pronunciar do que outros. Aos quinze anos de idade, frequentando a oitava classe na escola do terceiro nível dos Bambús na Katombela, eu viria a aprender um vocábulo que me marcou até hoje. (Abro parêntesis para dizer que, sendo a mesma, hoje a Katombela é diferente de noite. Não tem gajajas nem as velhas de kimone a panos de arrastar o chão, que se diziam donas da árvore no Namano somente em épocas de colheita. Cheira a líquido em todo o canto, e não é água. Para os casais em carrões, a marginal, aos apagões, convida marginais. A escola dos Bambús mal recorda a grata vizinhança que um dia foram os animais).

Há bocado eu dizia que cheguei a encaixar um vocábulo que me marcou até hoje. Foi quando o professor de EVP (Educação Visual e Plástica) pediu que comentássemos uma dada afirmação. Na realidade, tratou-se de uma ideia que negava precisamente um teorema científico de desenho técnico que nos havia sido ensinado naquela mesma semana. Isto é um absurdo, escrevi eu, não fosse o novo vocábulo ficar sem uso.

O professor é que não achou piada, nem muita nem pouca àquilo. Quando recebi a prova, estranhei o exagero de riscos a vermelho. Parecia obra de alguém que se iniciava em pintura abstracta. Curioso para ver a nota, reparei que dos iniciais doze valores, a classificação estava reduzida a oito, com uma observação furiosíssima: «Meça a tua língua, não estás a falar com o teu pai!» Eu disse cá comigo mesmo: pronto, com todo o respeito, há aqui qualquer parafuso solto na cachola do professor.

Primeiro, ele tinha-nos ensinado a medir esquadrias, circunferências, rectângulos, quadrados — nunca houve, até onde ia a minha reminiscência, aulas de medir língua de quem quer que fosse. Por acaso nem sei se isso era para se fazer com régua, ou com um transferidor, ou mesmo com fita métrica, que lá em casa até tínhamos uma de alfaiate.

Segundo, como iria experimentar com o meu pai um «absurdo!» que por acaso nunca me ensinou? Então, ele, militar, dirigente e político, que tinha já muito com que se preocupar, iria agora ser cobaia para vocábulos paridos pela escola? Mas que «absurdo!»
Gociante Patissa. Benguela, 1 Dezembro 2012
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