sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

[Oficina] Conto | A conquista do mundo

Texto de Déborah Dornellas,
ecritora e tradutora brasileira
Para Clarice
A penugem anêmica, o bico minúsculo, as asas de nada. Quando era menina, Mirtes tinha loucura por pintos. Sempre que olhava para o serzinho ínfimo, ela se enternecia.
A paixão começou no dia em que a Tata começou a trazer pintos da feira, junto com as galinhas vivas. Às quartas, tinha sempre uma receita diferente: assada, frita, ao molho pardo, ensopada com batatas, no salpicão, na canja do jantar. Toda terça cedo, a Tata trazia uma bicha segurando pelos pés, de cabeça para baixo, e a guardava no tanque, amarrada à torneira, para matar e depenar depois. Mirtes ficava espiando de uma distância segura, na ponta dos pés, assustada e curiosa. Escutava o cró-có có e o bater inútil das asas, presas no quadrado de pedra. Chegava perto de jeito nenhum. 
Quando, no fim do dia, a Tata torcia e cortava o pescoço, depois jogava água fervente no corpo da galinha, para remover as penas, subia pelos azulejos azuis da cozinha um odor de morte. Fazia Mirtes engulhar. Ela nem abria mais a geladeira o resto do dia, para não dar com a ave morta, oca e sem cabeça, marinando dentro da bacia coberta com um plástico.
O primeiro pinto que a Tata trouxe quase enlouquece Mirtes de amor. Ela apertou tanto, acariciou tanto, carregou tanto o bichinho de um lado para o outro, que o pinto não resistiu dois dias. Amanheceu a quinta-feira morto na caixa de sapato. Mirtes chorou até domingo. Na segunda-feira, a Tata viu a Mirtes e pensou: essa criança vai morrer de tristeza. Então trouxe outro pintinho da feira, no dia seguinte. Mais amarelinho ainda. Mirtes, quando viu o pinto novo, deu um salto e agarrou o coitado de um golpe. Ficou o resto do dia brincando com ele. À noite, enquanto namorava o bicho acanhado no fundo da caixa, cismou que o pinto estava tremendo demais, e era de frio. Teve a ideia de desmontar uma luminária velha e fazer uma gambiarra, para improvisar uma estufa. Enfiou soquete, fio e lâmpada de 40 watts caixa de sapato adentro, rasgando um buraco feio. Colou a tampa com durex. Engenhoca inapropriada para um pinto já fora do ovo. Resultou que a caixa entrou em combustão de madrugada, e a ave amanheceu torrada. 
Com a ajuda da Tata, Mirtes enterrou o corpinho teso e escuro num canto do gramado, debaixo de um ipê roxo, na lateral do bloco B, perto do primeiro morto. Uma cruz para cada um.
A Tata, coração mole, ficou com dó da menina mais uma vez e trouxe o terceiro pinto. Esse chegou a botar corpo. Mirtes amava o bicho com loucura. Fez roupas, pôs laço de fita. Um belo dia, concluiu que tinha chegado a hora do banho, porque o pinto começou a cheirar mal. Preparou com muito esmero e higiene uma cumbuca com água morna, cortou um pedaço de sabonete Palmolive, arranjou uma bucha velha e pôs o bicho dentro do recipiente, inventando que era uma banheira para pintos. Banhou penugem, cabeça, bico, asinhas, pés, tudo. Com água e sabão. Não adiantou nada a Tata falar dez mil vezes que pinto não toma banho, Mirtes. O bicho se afogou. E Mirtes quase se afoga em lágrimas. 
Mais uma cruz no gramado. A cova do afogado era a maior.

Por causa dos três assassinatos, a mãe de Mirtes proibiu de uma vez por todas a Tata de trazer mais vítimas da feira. A menina ficou para morrer, mas o jeito foi se conformar. Não queria mais uma morte nas costas.
Uns meses depois, numa terça-feira de agosto, com o ar absoluto de Brasília, a Tata não se conteve de compaixão e trouxe outro pinto. Lindo. O mais bonito de todos. Mirtes quase desmaiou de alegria quando chegou da escola e viu o bicho. Agarrou o pintinho e correu para o quarto. Pegou no armário outra caixa de sapato, arrancou de dentro o par de sandálias novas, atirou-as num canto e acomodou o recém-chegado. Ficou um bom tempo ali, admirando a criatura, esquecida da hora do almoço. Para esse ela deu nome: Alexandre. Alguém batizado de Alexandre já nasce fadado a grandes feitos. Um nome imponente. Mesmo para um pinto.
Nos dias seguintes, assim que chegava da escola, Mirtes corria para o quarto, fechava a porta, pegava a caixa do Alexandre e se atirava na poltrona. Apoiava a caixa na barriga e ficava ali, acariciando o bichinho, piando junto com ele. Até a Tata chamar para o almoço. Ô, Mirtes, hoje tem galinha assada com molho de laranja, que você gosta. Mas Mirtes não gostava. Não queria mais saber de comer aves. Nem ia mais até a cozinha às terças e quartas. Estava realizada com seu novo mascote. E agora tomava cuidado: nada de carícias excessivas, nem lâmpada na caixa, nem banho de cuia. 
Alexandre cresceu um bocado, o corpo e as asas. Quase não cabia na caixa. Mirtes arranjou uma caixa maior, fez uns furinhos na tampa, para o amigo poder respirar, colou a tampa com fita-crepe e pronto.
A mãe percebeu logo que a filha andava numa felicidade só e não teve coragem de proibir a amizade com o pinto.
Nos fins de tarde, Mirtes gostava de ficar olhando a paisagem pelo janelão do quarto de TV. Avistava a quadra lá embaixo, os blocos, a grama seca, as árvores com flores amarelas e cor-de-rosa, pessoas e cachorros passando, meninos de bicicleta, o céu azul avermelhando. Contra a vontade da mãe: não debruça na janela, Mirtes. Mas Mirtes debruçava. Agarrada com a caixinha do Alexandre.
Numa dessas tardes, a mais rubra, Mirtes quis mostrar melhor a superquadra lá embaixo. Debruçada no parapeito do janelão basculante, com a persiana toda erguida, abriu a caixa, tirou o pinto cuidadosamente de dentro e o postou de frente para a paisagem. Começou a descrever as belezas da vista: olha lá o gramado seco, as árvores, o parquinho onde eu brincava, a escola classe. É ali que eu estudo. Lá adiante é o Eixão, aquela pista larga, na beira do mundo. O pobre galináceo se desesperava entre os dedos da menina. Batia as asas com força e intenção, mas o máximo que conseguia era fazer umas cócegas tímidas nas mãos pequenas da Mirtes. Ela, muito atenta, percebeu na hora que era enorme, incontrolável, a vontade do seu amigo de ver tudo de perto, conhecer as coisas, conquistar o mundo. Então aprumou bem o pequeno, checou as asas, segurou o corpinho morno e mole com as duas mãos, tomou fôlego e arremessou o pinto pela janela: voa, Alexandre!

Nota do Blog Angodebates: No ano em que completa o 10.º aniversário, o nosso Blog lançou um desafio de crescer junto com os seus leitores, abrindo para o efeito uma oficina para a divulgação de contos, crónicas e poesia de autores com ou sem livros. Como é natural, teremos colaboradores principiantes, pelo que lá onde for necessário, a gestão editorial do Blog fará ou sugerirá arranjo. O que esperamos é no futuro olhar para o primeiro texto de cada colaborador e festejarmos o progresso que for alcançando.
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas