segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Nota solta | Não basta ser livro para se chamar obra literária

a imagem não tem relação com a notícia da TPA
"Comunicação e Marketing é o título da primeira obra literária do escritor fulano de tal, a ser lançada brevemente no CEFOJOR", abria assim uma notícia da TPA ontem à noite. E lá aparecia o autor a confirmar que se tratava de facto de obra literária, que ia já na sua segunda edição. Escritor? Obra literária? Ou seria, antes, um ensaio e/ou tese de um académico (cientista) no ramo das ciências da comunicação, já que o material tem um compromisso objectivo com a verdade? Neste caso, através do seu editor, a TPA (que não está sozinha nesta confusão) reproduzia a visão errónea de que todo o livro é uma "obra literária", mesmo se a sua natureza e conteúdo são "não literários".

Ora para ser obra literária teria de apresentar características como a variabilidade, a complexidade, a conotação, a multissignificação e a liberdade de criação, como se pode conferir aqui. Embora inicialmente literatura adviesse do latim "littera" (letra), há já muitos séculos que, a meu ver, a academia implementou a categorização da natureza dos textos, talvez como forma de melhor estudar e estabelecer indicadores de responsabilização dos autores, não podendo avaliar pela mesma medida o ramo que tem compromisso objectivo com a verdade dos factos e fenómenos (ciência) e o outro que assenta no olhar artístico do obreiro comprometido com a recriação do mundo (belas artes).

Mesmo a nível da teoria da literatura, pode-se, até onde entendo, escrever livros de ensaios, recenções críticas e resumos (textos académicos, portanto de característica não literária, que fazem do autor um ensaísta, não escritor) sobre livros de poesia, crónica, romance, contos, novela, dramaturgia (escrita criativa, portanto textos literários).

Participei há dias numa mesa-redonda radiofónica que tratou do papel da literatura na sociedade. A dado momento, quando questionado sobre os hábitos de leitura e acesso ao livro, e movido pelo princípio de que o conhecimento adquire-se e se partilha, vi a necessidade de separar a forma de ver o livro na nossa sociedade, entre o académico e o literário. Acabou sendo, infelizmente, o ponto que mais consumiu tempo e intervenções de ouvintes, apanhados talvez desprevenidos.

A título de exemplo, levantei que o prémio mundialmente mais vendido, o Prémio Nobel, tem uma categoria de literatura, que é atribuído a escritores, aqueles que fazem da matéria literária o barro da sua obra, se me permitem a figuração, aqueles que pelo olhar artístico procuram recriar o mundo. Não é o livro de auto-ajuda, ou de opiniões, ou de metodologias de ensino, ou de memórias que se torna elegível, mas o de literatura, o ficcionado. Não se trata de excluir ninguém, mas tão-somente evitar que se confunda formato com conteúdo. Não basta ser livro para ser obra literária.

Sobre o assunto, tenho a gravação de uma edição completa do programa "Tendências e Debates", da RNA, onde os escritores António Fonseca e José Luís Mendonça procuravam contribuir para a clarificação disso mesmo. Quem parecia ofendida ao longo do debate é a psicóloga Maria da Encarnação Pimenta (notável autora de livros sobre a compreensão de fenómenos comportamentais na sociedade angolana), pois alguns sectores costumam tratá-la por escritora, quando na verdade o seu contributo é como cientista social.

No site Recanto das Letras, este artigo sobre os elementos da obra literária foca no conteúdo e na forma. Vale a pena ler. Vale ainda conferir este artigo que nos dá conta de que um elemento central para a obra literária é a narração de um fato, evento, série de eventos, sentimentos, ideias ou simplesmente uma expressão artística sobre diferentes situações

Então, fica a fórmula básica: todo o livro é obra literária? Não! Obra literária implica linguagem literária, escrita criativa, visão a tender para a arte. Se Agostinho Neto lançasse livros sobre, por exemplo, como melhor aplicar a penicilina ou combater a malária, ele não seria escritor. Seria, sim, um médico que, no papel de pesquisador ou investigador, apresentava o seu contributo científico (não obra literária).
Gociante Patissa. Benguela, 18.01.2016
www.angodebates.blogspot.com
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