sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Crónica | Paródias que o povo traça: um país rasurado

Um país rasurado. É capaz de ser mesmo esta a mais expressiva fotografia para definir o que foi Angola em 2015, conforme nos sugere a voz do nosso povo numa alegoria registada ontem ao andar pelos subúrbios da Catumbela.

Dediquei-me ontem a mais um exercício de reencontro com o meu passado que, para quem não passa da casa dos trinta anos, só pode ser recente. Escolhi radiografar a via alternativa à estrada nacional número cem, aquele troço que vai da Catumbela à Kalumba. Só poeira e sacudidelas. Nada mais lembra o asfalto do tempo colonial, nem a hibernada promessa da sua reabilitação há quase uma década. Mas conduzir ali, olhando pelo outro lado da moeda, a par do suplício de ver o carro envelhecer vários anos por minuto, tem o seu lado altruísta: dá de comer o mecânico e o vendedor de peças.

O último dia do ano é sempre um acontecimento em si, pelo que estranho seria estranhar a agitação social. O ponto mais crítico é logo no início do troço, no desvio antes das bombas de combustível ao lado do cemitério. Clientes e vendedores de legumes dão vida ao pequenito mercado informal da berma, estreitando ao mínimo possível a via, como quem diz ‘atropele se quiser’. São 15h30 e o Ano Novo é já ali ao dobrar da esquina.

A condução faz-se devagarinho, muito abaixo dos medianos 30 km/h actuais, num troço de 6 Km que frequentei durante seis anos lectivos a pé. Já agora, usando do direito do escritor ao egocentrismo, depois de ouvir um veterano reivindicar investimento a uma aldeia, por ter sido ali circuncidado… peço atenção a esse troço pelo seu contributo na história sócio-económica da província de Benguela.

Posto no Kambambi, o olhar à esquerda é instintivo. Aquelas lúgubres paredes de tijolos desenterram felizes memórias do colega Cigano, dono de uma invejável bicicleta, que ainda na 7.ª classe (década de 90) faleceu num incêndio a meio da noite. Avancemos. Ao passar pelo bairro Akala e o respectivo desvio que dá para o Alto-Niva, os efeitos da crise económica são indisfarçáveis na pacatez de moradores e transeuntes. Noutras épocas, dava-se tudo a ver pela confluência de altas músicas, entre residências, barracas, lanchonetes e cantinas. Outro indicador de boa-vida durante a quadra festiva é ver gente trôpega, de ébria, desde as primeiras horas do dia. Eram já 16h00, e por acaso nada vi.


A minha jornada teve de ser interrompida já dentro do bairro Santa Cruz (que me viu crescer). Não podia avançar depois da igreja Católica, tal é a má condição do caminho. Pretendia ir até à cruz implantada por colonos madeirenses e que deram nome ao bairro, um bom miradouro para fotografar o Estádio do Buraco e outros ângulos panorâmicos.

De tudo o que vi, foi sugestivo um letreiro. Na inocência de um morador, se calhar alheio à profundidade semiológica do gesto, estava uma fiel miniatura do estado de alma do país. À inscrição original «RUA DA PAZ», estampada há vários anos, juntou-se uma enigmática rasura abrasileirada: «Não tem como, a crise afectou». Se afectou a rua, a paz, ou ambas, fica para o critério de quem lê. São paródias que o povo traça.

Já num registo mais objectivo, pelo desempenho dos mais variados sectores (político, económico, justiça, cultural, social), a imagem do país da paz saiu-se garantidamente rasurada.
Gociante Patissa. Benguela, 1 Janeiro 2016
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