sábado, 4 de julho de 2015

Opinião | Por que razão «Nga Muturi» não é um clássico da literatura angolana?

por Luís Kandjimbo, ensaísta e crítico literário

Em 1980, a União dos Escritores Angolanos publicou a segunda edição da «noveleta», como lhe chamou Mário António, intitulada Nga Muturi cujo autor é Alfredo Troni (1845-1904), um jurista português que na segunda metade do século XIX se estabeleceu em Luanda, tendo desenvolvido outras atividades como advogado, juiz e diretor de jornais, entre os quais se destaca o Jornal de Loanda. Após a sua publicação em folhetins no jornal português Diário da Manhã em 1882, a primeira edição de Nga Muturi saiu em 1973 com a chancela portuguesa das Edições 70.

O ensaísta e poeta angolano Mário António que escreve o prefácio aproveitava então a oportunidade para lançar mais uma pedra no edifício da sua apologia da crioulidade fazendo eco do famigerado lusotropicalismo de Gilberto Freire, doutrina tão cara à ideologia fascista do Estado Novo em Portugal.

Ocorreu muito recentemente (2014) uma terceira edição com a chancela de um projeto de divulgação de «onze clássicos da Literatura Angolana». Ora, se um clássico é uma obra que deve ser recomendável para o ensino das novas gerações, reitera-se aqui o problema da seleção de textos que suportarão o processo de ensino-aprendizagem e consequentemente a formação do cânone literário angolano. Uma década após a polémica travada nas páginas do Jornal de Angola que mobilizou a atenção do público sobre a inclusão/exclusão de determinados escritores numa coleção denominada «biblioteca da literatura angolana», subsistem dúvidas acerca da representatividade de autores e textos no quadro do sistema literário nacional.


Trata-se de uma problemática que merece uma séria reflexão, na medida em que este assunto já suscitou abordagens que poderiam ter conduzido a consensos. Estamos todos lembrados que o debate sobre o cânone literário em Angola ganhou visibilidade pública a partir de 1997, por ocasião do Encontro Internacional sobre Literatura Angolana, realizado em Luanda. Portanto, nesta matéria não se justifica a recorrente da imprudência quando se revela necessário proceder à revisão de leituras e avaliações críticas do passado. O trabalho de seleção do cânone literário angolano exige a leitura rigorosa de todas as obras escritas por autores angolanos com recurso a subsídios de uma profunda abordagem filosófica, teórica e crítica.

Para o que interessa ao tema em discussão, o domínio em que tal exercício pode ser suficientemente ilustrativo é o da teoria da literatura e da crítica literária, no que concerne a avaliação estética com particulares incidências sobre o universo dos discursos e das categorias narrativas dos textos. Além disso, há ainda outros planos de abordagem disciplinar que completam tal tarefa. Por essa razão, torna-se indispensável um conhecimento sólido da história social e intelectual de Angola, tendo em conta as diversas temporalidades e suas projeções.

Numa perspetiva analítica é fácil concluir que em Nga Muturi o retrato da sociedade colonial constitui o modelo fundador do que viria a ser a literatura colonial. Se o conceito de situação colonial revela a existência de uma sociedade assente na divisão maniqueísta e «racial» entre filhos da terra, indígenas e assimilados, por um lado, e europeus, comerciantes, portugueses, por outro lado, é presumível que a sociedade que se funda após a independência pretenda superar tal divisão. Sendo assim com o devido critério da seletividade, não me coíbo de excluir do cânone literário angolano as obras que reflitam a ausência de protagonistas angolanos e a negação da sua autonomia no plano ontológico. É o caso da obra em questão.

Portanto, a construção do cânone literário angolano é rigorosamente um problema de organização curricular, pois articula-se à problemática do reconhecimento das obras dos antigos excluídos do sistema colonial, mas hoje portadores e sujeitos de culturas com dignidade de qualquer outra cultura do mundo, sendo suscetível de transmissão aos angolanos das novas gerações.Com semelhante abordagem estabelecem-se conexões com o campo cultural, na medida em que está em jogo a imposição da visão legítima a respeito dos princípios da classificação das obras literárias.

Contudo, para lá do processo de descolonização cultural iniciado com os primeiro movimentos nativistas do século XX, ainda estão latentes em Angola as marcas do legado colonial. Daí que irrompam por vezes critérios de divisão tributários do colonialismo. Do ponto de vista estético, o retrato de uma personagem feminina como Nga Ndreza desvenda o olhar exótico que o autor lança sobre a paisagem humana local, integrada por mulheres que são objetos da concupiscência dos colonos. Bebeca, Nga Ndreza, Chica, Muximinha, Fefa são personagens que povoam o mundo de homens que apenas lhes cobiçam os corpos com desprezo total pela sua condição humana.

Aquele episódio dos açoites sofridos pela mucama Nga Ndreza por ter sido apanhada com o «Ebo, um bonito moço da Ginga, forte e esbelto, com uns olhos que eram os seus pecados», é revelador da instrumentalização das mulheres que se devem submeter à vontade dominadora dos argentários do momento, caçadores de fortunas nos trópicos. Por isso, consideravam uma «desgraça» que os «filhos da terra», após a sua morte, amigassem com as suas concubinas, receando que o seu legado fosse parar às mãos dos patrícios delas. Esse é o risco que corria Nga Ndreza, agora Nga Muturi. O paternalismo dos colonos não constitui apenas pura generosidade. Trata-se de um tipo de comportamento que recompensa a fidelidade das concubinas nativas que, recorrendo às promessas da Nossa Senhora da Muxima e aos expedientes dos filtros amorosos, deviam prender os patrões garantindo-lhes uma descendência.

Esse é o mundo do amor instrumental. Tal imagem contrasta com as propostas no discurso lírico de Joaquim Dias Cordeiro da Matta. É ele que com Delírios (1886) inaugura a construção de uma estética literária angolana, concorrendo para a definição de novos padrões da beleza e da condição feminina. Neste sentido Nga Muturi não representa qualquer modelo a seguir.

In «Mutamba», suplemento cultural do Novo Jornal, N.º 387, Luanda,03/07/2015
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