segunda-feira, 23 de março de 2015

Diário | O indigesto "melhor jornalismo de ANGOLA"

Noite de domingo, 22 de Março. O telejornal já leva mais de 45 minutos queimados numa cadência monocórdica. O assunto é ainda a tragédia das chuvas do Lobito que, nunca é demais lembrar, causou acima de 70 mortes e uma centena de residências destruídas, o que inevitavelmente criou um contexto de emergência e assistencialismo. Volvidos 11 dias sobre a trágica noite, o assunto continua actual, considerando que a dor persiste e os produtos doados, fala-se em mais de 10 mil toneladas, atravessam ainda a dificuldade mais determinante, que é a distribuição. A experiência angolana em matérias de ajuda humanitária ensina que a existência de bens de primeira necessidade em si não resolve, se não houver uma sistematização das várias fontes de recolha. Neste aspecto, o jornalismo tem também a missão de exercer monitoria para a transparência que a moral social exige, não fosse o recolhido algo que nasceu da boa vontade dos cidadãos. E é ali que, a meu ver, a TPA, que neste caso se assume como a maior máquina de mobilização nacional pela solidariedade, cometeu uma clamorosa falha de escolha quanto ao que seria o valor da notícia ou, se quisermos, o ângulo de abordagem. A TPA preferiu ficar-se por um jornalismo virado para a promoção de vantagens, o que, como é de prever, é um exercício repetitivo. Como resultado, falaram todos, os empresários, os políticos, os líderes associativos, os jornalistas da estação, estação esta que não coibiu as suas estrelas de aparecerem em poses de "selfies" com as fãs, e até em diferentes mudas de vestuário. Só não falaram os sinistrados. Quais são as suas dificuldades nesta fase de adaptação, considerando que as famílias foram assentadas em tendas numa zona até então virgem? Está certo que nos foi dado a ver o intenso trabalho das autoridades no que concerne à criação de condições para acesso à água potável e energia eléctrica. Mas há coisas que só mesmo quem as vive tem legitimidade para as retratar. É esse espaço que tem de ser dado ao cidadão comum, o que se calhar traria mais audiência do que investir no carisma do nosso Ernesto Bartolomeu, que ora entrava como repórter, ora como interlocutor, enfim. Excelências, como será que tem sido tratada a questão da escolaridade das crianças de famílias afectadas? Quando precisarem de se deslocar ao centro da cidade, como é que se safam? Haverá linhas de táxis? O que é que consideram prioritário em termos de bens? É verdade que há quem resista à ideia de ir para as tendas do Kamulingui, por ser distante dos mercados e do aparelho administrativo? Neste caso, o que será que defendem tais cidadãos como sendo a alternativa? Definitivamente, um jornalismo que se procure especializar em vender vantagens obtém o inverso do que procura, arrisca-se ao descrédito. Há que rever as estratégias. E como a nossa é a sociedade das retaliações, vou de peito aberto para as consequências que deste apontamento advierem. E como vale lembrar o slogan, "O melhor jornalismo de Angola está aqui na TPA."

Gociante Patissa, Benguela, 23.03.15
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