sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Crónica| A RAZÃO DO BARRIGA NO SAGRADA FAMÍLIA

Vou eu em manhã de intermitente sol pelas cercanias do Sagrada Família, no simples gozo de caminhar. Luanda, para turistas, ganha-se a pé. Tudo sobre rodas é lento, quase preso ao lugar. Até das árvores, as copas perderam a ginga, não se dá o vento a colher, vento que se converteu em sólido em obediência à malha gigantesca de edifícios. Não chove.

E caminho no sentido oeste, digo caminhava. Não posso seguir, há sobre a calçada um destacamento da UGP - não que eu temesse armas, tão evidente que é o dom meu de anti-balas congénito, não é? Eh pá, é assim: os carabineiros estão bem no seu posto de trabalho, e não é de bom tom os importunar com "dá licenças" em meu dia de ócio, não é verdade? - Tenho de voltar ao quarto.

Os quartos de hotel são iguais. Eu deles não gosto. Já nasceram impessoais. Escondo-me no aconchego cosmopolita de um livro, mas é por pouco tempo, felizmente. O companheiro de jornada convida para a caminhada, ao que anuo.

Pelo caminho, uma agradavel supresa, a primeira: chega ao fim a lacuna deixada há dias pelo par de calçado convencional para os dias de ofício. Sapato com o mínimo de estética e ao mínimo preço. Ufa!, para alguma coisa vale a insubordinação dos vendedores ambulantes aos fiscais da Câmara e respectivo código de postura.

E seguimos desbravando avenidas, até o colega achar a embaixada de um país que ansiava, a segunda surpresa. Há que retornar ao hotel, mas não sem antes parar no pátio do católico templo e engraxar os sapatinhos. Banco há um só e é para o cliente, no que me contento com um imediato improviso.

Como não reluz o sapato do amigo, tomo de assalto a caixa e as escovas, pondo em prática a experiência acumulada na transição entre as décadas de oitenta e a de noventa. Isso já num vai brilhar, desengana-nos o mestre Maninho, que se insurge ao ser pelo seu amigo tratado por Mindo. Têm ambos aspecto andrajoso, arriscaria em dizer moradores de rua.

Então, mas, entre Maninho e Mindo, tu preferes Maninho? Meu kota, a minha mãe que me meteu na face da terra me deu nome de Maninho, num é apelido. Isso é ele, que nome dele é Zé, mas aceita nome de Barriga. Quarquer dia, fataliza ele, um Barriga de num sei onde vai fazer um mambo malaike e vão pensar que é ele.

E és Barriga porquê? Indago eu, no conceito de que há sempre uma história por de trás do nome. É apelido, responde ele, lacónico, seu olhar omitindo algo. Eu não sossego, a barriga, entre os ovimbundu, reflecte a bíblica metáfora do suor. Não é para encher a barriga que nos matamos de trabalhar? És o Barriga porquê? Era barrigudo, diz, jocoso, o Maninho, o que visivelmente não é verdade.

Qual é a razão de seres o Barriga? Eu cresci aqui, meu kota, a lavar carro. E? Esse nome quem me deu é um mutilado que me recebeu criança, me criou, e me ensinou muita coisa. Ele já morreu. Ele já me deixou Barriga, é por isso que não se tiro o nome.

Gociante Patissa, Aeroporto 4 de Fevereiro, terminal doméstico, Luanda, 07.11.14
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas