sábado, 31 de maio de 2014

Diário de um pai babado

Imagine-se um casal internacional que celebra a chegada de cada filho como se fosse o primeiro. Então, na véspera do quarto parto, a mulher embarca para o seu país, dada a óbvia noção de os serviços médicos lá terem maior qualidade, sem colocar de lado a vantagem da visibilidade para a criança, que vem com a dupla nacionalidade, sendo a do país europeu (do lado materno) e a angolana (do lado paterno). O bebé nasce, recebido por um valoroso ritual de boas vindas lá. Do lado de cá, o pai, que tudo segue pelas fotos, não tem como não ser roído pelo misto de curiosidade e ansiedade. É como me sinto, duas semanas volvidas sobre o lançamento do meu livro de poesia, "Guardanapo de Papel", editora NósSomos, Lisboa, por lá lançado. Parece que amanhã, a meio da tarde, finalmente, chegam-me alguns exemplares deste meu quarto filho. É desta que beijo o meu recém-nascido hahahaha
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Citação do dia

"A literatura não pode rebaixar-se a ser mera e simples transcrição da realidade" - João Melo, citando uma estudiosa não identificada. In "O Homem que não tira o palito da boca", pág. 21. Editorial Nzila. Luanda. 2009
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sexta-feira, 30 de maio de 2014

Candy Dulfer, uma saxofonista a ter em conta

Até estou com sono, mas está tão bom um DVD de Suzana Lubrano que abdico do primeiro. Há uma saxofonista que é um talento e tanto, Candy Dulfer. Sim senhora, está já contratada no mercado da minha imaginação! hahaha
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Diário

É sempre aborrecido termos de levar com alguém (palestrante, professor ou o que seja) a se impor como doutor, não poucas vezes com base numa licenciatura... trabalhei 22 meses num estaleiro cheio de engenheiros e tantas outras qualificações, maioritariamente franceses: nada de títulos. O "único" engenheiro, curiosamente, falava português. Trabalhei durante 12 anos no sector voluntário, com gente geralmente de expressão inglesa: nada de doutorismo. Quando é que nós vamos largar essa mania dos epítetos? Até no lar, doutor fulano, caramba!
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quinta-feira, 29 de maio de 2014

Já fiz a minha inscrição ontem, o curso de pós-graduação em ciências da comunicação, com acesso ao mestrado na CESPU, inicia em Julho, mas só se mais candidatos surgirem

Utilidade pública:ABERTAS INSCRIÇÕES PARA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO COM ACESSO AO MESTRADO

Promovido pela CESPU Benguela, em cooperação com instituições universitárias portuguesas. O sistema é semi-presencial com professores itinerantes. Para mais informações 921758485

Declaração de interesses: Eu gostaria muito de, finalmente, qualificar-me numa área profissional de que gosto e valorar a experiência acumulada em rádio, jornais e comunicação on-line. Não havendo herança, bolsa nem sobrenome, a alternativa serve. Só que o arranque do curso depende da quantidade de interessados, ou seja, eu dependo de ti. Mbora lá ser meu colega?
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terça-feira, 27 de maio de 2014

Corredor

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Alpinistas

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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Citação

"Quem não quer perder as asas / tem sempre de estar a voar!"
Carlos Monteiro Ferreira, in Causas Perdidas, pág. 32. LP-Books, São Paulo, Brasil. 2010
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Utilidade pública: Abertas inscrições para pós-graduação em ciências da comunicação com acesso ao mestrado

Promovido pela CESPU Benguela, em cooperação com instituições universitárias portuguesas. O sistema é semi-presencial com professores itinerantes. Para mais informações 921758485

Declaração de interesses: Eu gostaria muito de, finalmente, qualificar-me numa área profissional de que gosto e valorar a experiência acumulada em rádio, jornais e comunicação on-line. Não havendo herança, bolsa nem sobrenome, a alternativa serve. Só que o arranque do curso depende da quantidade de interessados, ou seja, eu dependo de ti. Mbora lá ser meu colega?
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quinta-feira, 22 de maio de 2014

Diário: VESTIR AS PALAVRAS DE ESCUSADO MEDO

No meio-termo está a virtude, diz a sabedoria popular. O que não deve ser tão saudável é repartir ainda mais a metade que cabe no campo do que se pode ou não dizer. Vêm estas palavras a propósito de um musculado texto à guisa de direito de resposta no Jornal Chela Press, visando crucificar o Nelson Sul D'Angola (correspondente em Benguela do Semanário Angolense), não tanto pelo conteúdo - num assunto ligado à pouca transparência na relação contratual, ou fim desta, entre o governo de Benguela e a GB Consultores. O pecado do Nelson foi ter frisado que o sócio-gerente da GB é luso-angolano. Outras vozes dentro da classe também "reprovaram" o Nelson (com cujo trabalho nem sempre estou de acordo, diga-se). Ora, porque é que se quer transformar em insulto em Angola dizer-se que se tem dupla nacionalidade, quando a outra é portuguesa? Carlos Alhinho, o histórico treinador dos palancas negras, era luso-caboverdiano, mas nunca choveu lâminas por se dizer isso. Estou ciente de que esse assunto é melindroso, e é o tal sentido de tabu que não entendo. Andamos a vestir as palavras de escusado medo. Se é português, é. Se tem ao mesmo tempo cidadania angolana, tudo bem... Mas que mal há em assumir tal condição?
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quarta-feira, 21 de maio de 2014

LEMBRETE: É JÁ neste dia 22 DE MAIO, PELAS 16H30, no Auditório do Centro Cultural de Vila Nova de Foz Côa, Portugal

A Poesia Angolana Hoje - Debate e lançamento dos livros, edições da Nóssomos:
"8:2= 24", de David Capelenguela 
"CONTRAFÉ", de Carlos Ferreira
"GUARDANAPO DE PAPEL", de Gociante Patissa

Apresentação dos autores por Luandino Vieira, editor da NósSomos, com participação de Ana Paula Tavares, David Capelenguela Carlos Ferreira e Zetho Cunha Gonçalves, 
Seguida de sessão de autógrafos

Moderador : João Paulo Lucas Sousa
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Angotudo

Dando uma volta pela cidade do Lobito, salta à vista a quantidade de estabelecimentos comerciais (lojas, lojecas, armazéns, etc.) cuja marca é aglutinação de "Ango" com qualquer coisa. O lado irónico da coisa é que se trata quase invariavelmente de proprietários estrangeiros. Definitivamente, não deixa de ser estranho tanto "amor" por Angola.
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(arquivo) Ruído na comunicação: WANDA É COM “U” OU COM “V”?

Passam das 10 horas da manhã. É domingo. Pessoas normais estarão a caminho da praia, a visitar parentes, ou na cama em ressaca, não ligadas ao telefone fixo com discurso repetido para uma lista com mais de 80 nomes. Mas tem de ser, e é comigo:
"Aló", atende-me uma voz feminina. 
"Sim, bom dia. Ligo da empresa X para confirmar se a senhora vai usar o serviço que reservou para hoje. Falo com a senhora Wanda?"

Do outro lado da linha, a senhora não se contém. Rebenta mesmo uma risada com sabor a sarcasmo. Estou calmo e deixo a senhora rir-se às custas do meu ouvido. Instantes depois, satisfeita talvez por lavar a alma, ela confirma, corrigindo:
"/Uanda/?! /Vanda/!!! Sim, sou eu. Vou usar".

Não sou pago para discutir sociolinguística com os clientes. Aliás, pouca utilidade há para pensar, de tão autómatas que certas missões são, pelo que agradeço a atenção e deixo um até logo.

Agora, no intervalo entre uma chamada e a outra, quem ri sou eu. Sim, porque em Umbundu, língua nacional predominante no centro e sul do país chamado Angola, e em particular em Benguela, "owanda", ou simplesmente "wanda" [ua:nda], significa rede. É um nome que se dá a crianças que surgem depois de o casal ter perdido outros filhos. É como metáfora a dizer que a rede da morte poderá arrastar esse recém-nascido a qualquer momento também. E a pessoa cresce com aquele nome. Para a minha interlocutora, de certeza, só existe uma forma, Wanda que se lê com /v/.

Já lá vão uns três anos e não sei como fui pensar logo hoje em ruídos na comunicação.
Gociante Patissa, Benguela, 08.12.2012
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recordando um indignado adágio umbundu com o meu pai: "POWIÑI WAKUTO, NDA KA PAKAVI AVA VAFINYA, PAKAVA AVA VAFEMBULA"

"Powiñi wakuto, nda ka pakavi ava vafinya, pakava ava vafembula"
(no grupo dos que usufruem aos excessos a fartura, se não se cansam os que peidam, cansam-se os que têm de abanar com a mão o nariz torcido para minimizar o fedor).
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terça-feira, 20 de maio de 2014

Citação do dia

"As lágrimas verdadeiras são uma forma útil de chegar a algum lugar" - do personagem interpretado por Morgan Freeman no filme "um lugar especial"
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segunda-feira, 19 de maio de 2014

Diário: MONOPÓLIO DA RAZÃO

Insurgiu-se contra a manhã. E teve razão, pois nada tinha que surgir nublada quando a pessoa disto não gostava. Retirou-se, calada, a culpada. E veio a tarde, também ela, aborrecer a pessoa, que se encontrava a meio caminho do trabalho. Quem julga a tarde que é para ousar abrir os poros das axilas da pessoa, que via deste modo nuvem húmida na domingueira camisa?! Como se não bastasse, e qual conspiração, vinha a noite de opaco véu, atrapalhando a sede de luz da pessoa. A briga é imediata. Mas tem razão a pessoa, pois assim nasceu e são para serem observados suas escolhas, gostos e birras, não importa como era a vida antes do Éden. Talvez porque mais idosos, intentam a manhã, a tarde, a noite, o calor e os ventos uma conciliação. Pobres criaturas cósmicas que não sabem que a pessoa não pode ser indagada, pela natural obrigação que tem o resto do universo de aceitar que assim nasceu. Isolada ou ovacionada, pouco importa. A pessoa, porque de si se basta, segue chocando contra paradigmas, quaisquer que sejam eles, chamando a si o monopólio da razão. Ter razão, tal como ser-se a vítima, é neste caso uma questão de perspectiva. 
Gociante Patissa
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domingo, 18 de maio de 2014

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Diário: "OSONGO YASENGA"

Voltei ao bairro em que cresci e me deu as dificuldades (para amadurecer) e as alegrias (para o necessário equilíbrio). É uma sanzalita chamada Santa Cruz. Querem agora que a achemos no município da Catumbela, mas o bom mesmo é que as ordens administrativas não comandam memórias - logo, aquilo Lobito é. Morei lá entre 1987 e 2008. Mãe de um é tia de todos, pai também, o mesmo com os irmãos. Também é colectiva a dor, a perda ou, quando for o caso, a vergonha. Gosto de interagir com jovens, mas gosto muito mais é de ouvir os mais-velhos, mergulhar em seus suspiros, diálogos, sem deixar de estar atento às pragas rogadas, sejam abertas ou veladas. Em Umbundu, quase tudo é por atalhos, servido na bandeja da metáfora, do fragmentado, da inferência. Na saudação, um breve tema de conversa com uma vizinha (a propósito, nós não temos isso em Umbundu, não dizemos o seu equivalente literal "una tulisungwe", mas sim "ukwetu umwe tukasi laye kumwe", ou seja, uma pessoa companheira). A mais-velha lamentava-se de vários óbitos em dias seguidos, ao que se seguiu um profundo... "OSONGO YASENGA". No contexto do diálogo, queria dizer que o bairro está sem graça. Mas "osongo" pela mesma grafia e fonia pode também significar semente, ao passo que com uma ligeira alteração na entoação pode significar espinho.
Gociante Patissa
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Divagações: SOBRE O VALOR DO OSSO ENTRE OS OVIMBUNDU, OU COMO NASCEU O POEMA "REGISTO MAGNÉTICO DA MAMA"

Quando em meados da década de 1990 do século 21 testemunhei a grande festa de efiko (ritual de iniciação feminina) entre os Vakwandu, grupo cultural pré-Bantu predominante no chamado território dos Vandombe, fiquei mais ou menos decepcionado. Estava de visita à comuna da Kalahanga, tinha eu pouco menos de 15 anos, e o meu pai, outro militante profundo pela tradição oral, cuidou de nos aproximar à manifestação cultural daquele povo. Como filhos do chefe (o velho era o administrador comunal), foi-nos granjeado um lugar privilegiado. A minha decepção nada tinha que ver com o ritual em si, ou com eventual diabolização infundada de que este tem sido vítima ao longo dos tempos, mas tão-somente pela forma como anciãos procuravam, digo mesmo compulsivamente, roubar um pedaço de carne ao lume e ir chupando o tutano, tão agarrados ao osso, sujeitando-se a pauladas do guardião da copa. Na minha concepção, como julgo ser na da maioria de outros Ovimbundu, o osso é a parte menos valiosa do animal. Temos um provérbio segundo o qual “u olya omuma ka litami losonde” (quem come o fígado não se suja com sangue). Subentende-se existir no fígado o maior prestígio, tanto assim é que, quando se prepara uma refeição para visitas ou pessoas relevantes, o fígado é das partes que não devem faltar. Outro provérbio diz que “u ka li po ombelela yaye akepa” (ao ausente, há o risco de sobrarem apenas ossos para conduto, mais concretamente o que seria acompanhante para o pirão de milho ou de farinha de mandioca, que é invariavelmente a base das principais refeições no meio rural). Bem, é certo que não seria pelo valor antropológico do osso que o estudante de origem Ovimbundu andaria aos pontapés com o conteúdo da anatomia, que atribui ao esqueleto o mérito do equilíbrio do corpo humano. Para terminar, partilho uma das várias lições indirectas que retenho da minha mãe, nesta máxima: “cimwe, nda tuyola, tuyolela ño apa kuti ovayo akepa” (às vezes, se é que nos rimos, só o conseguimos porque os dentes não passam de ossos). E aqui vai um poema que vem no meu livro GUARDANAPO DE PAPEL, pág. 15. NósSomos. Lisboa, Portugal, 2014:

REGISTO MAGNÉTICO DA MAMA

Calha às vezes filho
que o arco-íris pinta cantos farpados
no centro da mão do tímpano

Também calha filho
que o arco-íris traz cócegas à pétala

O músculo então cede
com a leveza da água
afinal
dentes são só ossos.

Gociante Patissa, Catumbela, 16 Maio 2014 
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quarta-feira, 14 de maio de 2014

AQUELAS BOTAS NOVAS (conto de Roderick Nehone)

Há três noitadas que não se ouvia um único tiro. O lado de lá do estreito curso de água alojava os inimigos, agora tão extenuados como ele. Chovera muito neste intervalo de tréguas. O rio saltara do seu leito e tomara de assalto os capinzais. A pradaria sentia saudades do gado que se esfumara sem dizer adeus. O ar empestava. A pastagem dos bovinos fora invadida por centenas de corpos inchados, de amigos e inimigos. Havia de tudo um pouco naquele matadouro humanal. Cabeças sem corpo, corpos sem pernas, pernas com botas, botas sem atacadores e atacadores sem donos, expondo-se gratuitamente no que fora teatro das operações militares.

O declive do relevo fazia a água escorrer ladeira abaixo. O líquido envolvia os corpos saponificados, oleava-se e arrastava os vermes pràs trincheiras, feitas cloacas, onde os combatentes se escudavam dos franco-atiradores. O vento encarregava-se de repartir um cheirinho nauseabundo, próprio da carne em decomposição, que mareava até aos mais cacimbados guerreiros. Aquela migalha de mundo chamara a si o inferno.

Bem no chão da trincheira, de cócoras com a arma repousando ao lado, olhava taciturno pròs furos das suas empapadas botas de lona. Estava cismado, obstinado, impaciente também.

De vez em quando assomava a crista para ver se o prostrado ainda lá estava. Este gajo não acaba de desinchar — dizia para si mesmo. Exatamente. Queria. Intimamente, desejava que o seu camarada que jazia cinco metros à frente do fosso, na direção do inimigo, desinchasse o mais rápido possível. É que o falecido calçava um par de botas de cabedal, novas, daquelas de duas fivelinhas ao lado. E ele se dispusera, estava irreversivelmente decidido a rastejar até ao corpo para lhe retirar as botas. Pegar nas novas e jogar fora as suas rotas botas de lona. Mas tinha de esperar. Era preciso que o corpo esvaziasse para facilitar a operação. Tinha de aguardar mais uns dias. Tinha, sobretudo, de dilatar a chegada da sua própria morte. Não podia, não devia morrer no próximo combate. Tinha mesmo de rezar para não haver combate até que ele pudesse estrear o couro daquelas botas novas.

Continuava a chover. O céu borrifava rudemente os homens vivos e mortos e a terra, que testemunhava a sua fúria. Os abutres refugiaram-se nas ramalhoças esperando o sol, para à réu descerem em picada recolherem o repasto que os homens lhes entregavam de bandeja. Tamanha serventia. Os homens tornaram-se copeiros dos vulturídeos a quem presenteavam em lúgubre bacanal os corpos dos seus próprios irmãos.

O crepúsculo irrompia subitamente como de costume. Aproximava-se o momento solene em que a sua paciência seria premiada com umas botas novas. Qual cometa saído da terra, uma bengala profana com a sua luz o firmamento. O olhar ansioso do soldado poisou sobre o inusitado clarão e se fechou de vez com a explosão do obus que mergulhara na sua própria trincheira.

As botas de cabedal lá estavam, num corpo agora menos tumefacto à mercê de quem as pudesse salvar, qual troféu de guerra.

In «Balada dos Homens que Sonham», pág. 149-150. Clube do Autor & União dos Escritores Angolanos, 2012. - Imagem com assinatura de autor não legível
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sábado, 10 de maio de 2014

Extracto do conto UM NATAL COM A AVÓ

Todas as vezes que veio à cidade, Velha-Mbali se deparou com deselegantes surpresas, mas a desta vez, batia seguramente todos os recordes. A anciã chegou mesmo a tossir de choque ao cruzar com miúdo de doze anos apenas, não mais do que isso, girando a cidade para cima e para baixo com cuecas e sutiãs de mulher adulta no ombro a gritar: «arreou, arreou no negócio, é a última zunga do ano!!!»

E como a ousadia é a alma do negócio na zunga, o rapaz abordou-a insistentemente, para não dizer chatamente:
— Minha mamoite, arreou na tanga; olha “mónica”; táqui surtião…

Velha-Mbali ainda tentou fingir indiferença, mas não aguentou. Arremessou, com toda a violência, o galo de raça contra a cabeça do adolescente:
— Vai faltar respeito na tua mãe, que não te deu educação!!!

O zungueiro, que nunca vira tão intempestiva reação de potencial cliente, logo uma “mamoite”, meteu-se a correr. E no máximo da sua quilometragem! E devia ter uma cabeça muito rija mesmo, o zungueiro, já que o impacto da pancada fez rebentar a corda que imobilizava as patas do galo. Este, que não imaginava as fêmeas que por ele esperavam para reprodução lá no kimbo, meteu-se em fuga no frenético trânsito urbano em hora de ponta. Era ver o desespero da anciã diante do risco de perder o animal. Isso é que nunca! Eis que arregaçou o espírito, e lá ia atrás do galo, ela que também já não tinha lá muita juventude nas pernas. De repente… — puapualakatá, pumbas! — acabava de ser atropelada por um kupapata, que vinha em sentido contrário.
— Netele, a njali, ndakapele okuteta onimbu… (É desculpar, minha mãe, a intenção era fazer corta-mato...)
— Amõla wange, watopa muele cokuti vetapalo omo oteta onimbu?! (És tão parvo assim, meu filho, que queres corta-mato na estrada?!)
— Vangecele, mamã…(Perdão, mãezinha…) — suplicava o kupapata, enquanto se levantava do chão e inventariava os danos.
— Mbi cakulimba okuti olikondakonda opitaela?! (Esqueceste que quem contorna também costuma chegar?!)

O kupapata de imediato ligou para o serviço de bombeiros, que localizou a família e levaram Velha-Mbali ao banco de urgência. Algumas horas mais tarde, estava aplicado o gesso. O kupapata tinha muitos danos, a começar mesmo pela compra de outro galo de raça — regressar de mãos a abanar é que Velha-Mbali não aceitava de modo algum!

Gociante Patissa, in “A ÚLTIMA OUVINTE”, pág. 62-63. União dos Escritores Angolanos, Luanda, Angola, 2010.
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Diário

Um dia sonhamos: "Humildade, Justiça e Solidariedade". Tudo o que anima a mão é o sonho congelado. Houve equipa, o caminho colheu degeneração. Não era suposto o telefone ainda cobrar justificações, como se fossem deste singular os louros da tragédia desta maquilhagem que há muito lavei.
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sexta-feira, 9 de maio de 2014

"Escrevo para não falar sozinho!" - Cazuza
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NÃO TEM PERNAS O TEMPO (fragmentos)

Perdido e Veremos lamentavam-se, ignorando que os funcionários públicos coleccionavam meses de salários em atraso. Os camponeses de subsistência arriscavam o pouco tutano, mas lá vinham os ladrões, quantas vezes mais robustos, colhendo com pás o que um dia se cultivou com enxadas. A fome nunca foi boa professora de ética nem de estética.

Veremos e Perdido recorriam à combinação dos instintos da criatividade gastronómica e nutricionismo. Aos domingos de tarde, quando havia pouco movimento nas lavras, carregavam na pasta diplomática uma frigideira e palitos de fósforos. Aleatoriamente escolhiam uma lavra, onde faziam pipoca de sementes de girassol ou de bagos de quiabo, estes últimos rijos como os próprios dentes.
(…)
Depois surgiram as cozinhas humanitárias do PAM, que chegaram a ser o céu de muitas famílias. O problema é que as filas eram muito longas, e mutilado fica cansado de tanto aguardar com uma só perna. Perdido tinha que partilhar o pouco que recebia, sem esquecer que, pela ordem alfabética, até chamarem os da letra P, a papa chegava já fria.
(…)
Como se isso fosse pouco, havia esporadicamente cadáveres à beira da estrada, aguardando pela intervenção dos serviços comunitários e o tractor de recolha. À primeira vista, havia mais vida em cadáver do que no homem da recolha.

Certo dia, António Veremos e Grito Perdido decidiram forçar um encontro com o Delegado Provincial da Secretaria de Estado para os Antigos Combatentes e Veteranos de Guerra.
(…)
Postos lá, e após várias horas pressionando a secretária em como não deixariam para outra altura, o Delegado recebeu-os de pé, a despachar, no corredor. O anfitrião era kambuta, de uma barriga que teimava em esticar a balalaica, vinco de gume nas calças, sapatos quadrados bem reluzentes, risco no penteado, pente no bolso da camisa, enfim. E saltava à vista o brilho oleoso no rosto do mwata, indicador de que a vida lhe corria bem. O Delegado pediu mais paciência, havia coisas mais urgentes do que a preocupação de dois indivíduos, pois atendia os nove municípios da província. Perdido e Veremos exibiram passaportes de disponibilidade, deixando claro que se tratava de ex-combatentes.

— Meus camaradas, tropa nós todos fomos! Já disse para ter paciência, o processo vai correr os trâmites administrativos normais, o tempo que levar.
(…)
— Mas, senhor Delegado, uma vez que estamos aqui, não podíamos falar já do assunto? — Perdido contestou.
— Delegado, nós viemos de comboio do Lobito, tem que pensar nisso… — António Veremos acrescentou.
— Alto aí! Tu não me mandas, eu sou superior hierárquico! Aliás, vê-se bem que nunca foste tropa mazé, senão batias a pala antes de me dirigires a palavra. Não entendes de disciplina militar e me apareces aqui com passe de desmobilizado de gabinete?

Veremos olhava o Delegado e via as infernais troças de Zé do Norte. E ali, — tomas! tomas! tomas! tomas! — quatro valentes muletadas da cabeça. Quando a guarnição entrou, já o chefe estava desmaiado, a sangrar. O agressor era levado à cadeia.

Gociante Patissa, in «Não Tem Pernas o Tempo», União dos Escritores Angolanos. Luanda, 2013
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quarta-feira, 7 de maio de 2014

Diário: UM TEATRO A VALER

Gostei de ver agora no Janela Aberta (TPA) os breves minutos de teatro com o grupo Oásis (ligado à Força Aérea Nacional). A peça era de intervenção e retratava distúrbios alimentares, numa prestação simplesmente bem conseguida. O personagem é um pedreiro que enfrentava indigestão, depois de ter ingerido gelado, funji, batata, tudo, em quantidades excessivas. É só apetite mesmo, sublinhava. Aí entra a mulher que lhe esfrega petróleo iluminante e passa com a vassoura sobre a barriga, suspeitando tratar-se de maus espíritos, até surgir uma terceira pessoa que aponta o caminho do hospital. Humor inteligente, mobilidade sóbria em palco, expressão muito próxima ao natural. Confesso que a minha impressão do teatro, de forma geral, não é a mais positiva, sendo muito previsível o retrato de violência e sobretudo recorrência temática. É por isso que a satisfação é muito grande quando vemos teatro com elevação estética. Parabéns, Oásis. Aliás, para um grupo que foi, entre outros, a base da radionovela Kamatondo, estranho era esperar algo inferior.
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terça-feira, 6 de maio de 2014

Diário: FRUSTRAÇÕES DE UM FOTÓGRAFO DE BRINCADEIRA


Passei ontem pela loja de um vietamita simpático onde encontrei uma lente/objectiva que me deixou com água na boca. É uma 18-200 mm para Nikon, o que me pouparia de andar, como sempre ando, com duas, sendo uma 18-55mm e ou 55-200 mm. O preço é que não era lá muito bom conselheiro, "apenas" 75 mil kwanzas (USD 750). Ainda tentei, por tentar apenas, reduzir para 60 mil. "Eu só baixa 2 mil, amigo". Para quem se dedica à fotografia por mero passatempo, you have to think twice before you open your savings hahaha. Mesmo sabendo que é vocação das lentes custar caro, saí com a decisão de esquecer tal ideia de compra, mesmo até porque - prémio de consolação? - de acordo com as aulas do curso, quanto mais zoom a lente tem, menos qualidade passa a ter, dada a quantidade de vidros no tubo que constitui o objecto. O que preciso mesmo deve ser mais é uma lente fixa, teoricamente mais clara. Duro ser "foteiro" neste deserto em termos de oferta de material fotográfico 

Foto de autor desconhecido
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EXCERTO


"O homem contemplava do cais do Tamariz, com os profundos olhos de sua alma, o navio que descrevia a última curva do seu destino, a Restinga, o Porto do Lobito. Vinha dos lados de lá. Onde, exactamente, não interessava saber na altura, talvez também não agora. O certo é que Veremos estava quieto, estático mesmo, de pé, só olhando.

Era 4 de Abril de 2002. A televisão e a rádio transmitiam em directo a cerimónia de assinatura do Memorando de Entendimento do Luena entre o exército governamental e as forças militares da UNITA. Estava Angola, finalmente, vestida de sonhos e verdejantes reencontros. Na ponta da caneta nascia o mais afinado cantar das pombas. Mas o dia tinha um motivo ainda mais medular para Veremos: a sua filha, do casamento com a falecida Chiquita, completava o segundo aniversário.

Envolto num silêncio sublimemente engrossado pelo bater das ondas na estrutura de betão, o homem flutuava no auge da abstracção, longe das controvérsias da vida fora do oceano. Que magia se escondia na cena que contemplava? Seria das águas que se rasgavam com a aproximação do navio? Seria da maresia, ou era a sensação de voar, não obstante os pés estarem assentes num solo esquentado pelo sol do meio-dia?

Horas após o navio passar, o homem continuava capturado pelo mar, seguindo as acrobacias do peixe. Plenamente parado no tempo, nem fome nem nada. O sol retirou-se primeiro, antes das dezasseis horas. Depois foram-se os peixes. Mas Veremos sempre ali".

Gociante Patissa, in «Não Tem Pernas o Tempo», pág. 94. União Dos Escritores Angolanos. 2013
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Emblemático

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segunda-feira, 5 de maio de 2014

Nota de imprensa: LANÇAMENTO DO LIVRO DE AIRES DE ALMEIDA SANTOS

Por incumbência da editora NósSomos, com sede em Luanda, dirigida pelos veteranos escritores Luandino Vieira e Arnaldo Santos, vimos pela presente solicitar a vossa divulgação e cobertura da sessão de lançamento do livro “MEU AMOR DA RUA ONZE” DE AIRES DE ALMEIDA SANTOS, que terá lugar no anfiteatro da Mediateca de Benguela, no domingo, 11de Maio, pelas 15:30 horas.

Propositadamente enquadrado na jornada de mais um aniversário da cidade de Ombaka, o lançamento do livro de AIRES DE ALMEIDA SANTOS presta singela homenagem à memória do poeta benguelense que imortaliza a cidade, principalmente pelo clássico literário “Meu Amor da Rua Onze”. As entradas serão livres e a apresentação do livro será feita pelo académico Francisco Soares e pelo Jornalista e escritor Carlos Ferreira “Cassé”, ambos vindos de Luanda.

Para além do lado lúdico, que compreende a apresentação formal e recital de poesia e trova, o livro estará também a ser comercializado ao preço de 500 (quinhentos) kwanzas. A organização do acto está a cargo dos escritores Gociante Patissa e MBangula Katúmua, desde já disponíveis para mais informações através dos telemóveis *******, respectivamente.

Cientes de que o vosso papel é determinante para a festa, subscrevemo-nos.

Benguela ao 5 de Maio de 2014

O organizadores,

Gociante Patissa

____________________

MBangula Katúmua
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sábado, 3 de maio de 2014

Diário: PEQUENOS "DEUSES DE FUMO"

Os escritores - na lógica de estar a pagar o justo pelo pecador - são uma "raça" não poucas vezes chata. Imaginam tanto, inventam tanto que volta e meia se acreditam possuidores de uma dimensão messiânica. Espero que não a tenha, mas, sendo uma vaidade negar defeitos, tentem ao menos perdoar-me, caso não me consiga livrar de tal tentação. A mim, na qualidade de espectador, chega quase a enojar o narcisismo que se desfila nas entrevistas avulsas ou na imposição do auto-valor em função de um acumular de prestígio desses "deuses de fumo". Há quem entre em quase ataque de nervos, não se poupando de apelar à saúde da sua próstata, pelo simples facto de, em casual circunstância, encontrar-se na mesma linha do equador em termos de receber e-mail de agremiação com algum nome de autor recém-revelado, por exemplo. Não faltam ainda aqueles que se arrogam o direito de qualificar poemas de outrem, desde que não se encaixem nos seus gostos ou escola, como simples diários ou letras de kizomba. Há vaidades para todas as despesas, incluindo transformar menores de idade em críticos de arte, se tal contribuir para publicitar o núcleo familiar como celeiro de intelectualidade. No outro dia, certo escritor, que vive as suas ideias e voz no mais veemente e recorrente êxtase, tentava convencer-nos de que a sua escrita era auxiliada por búzios. Dizia aquele "deus de fumo" que, em situação de tragédia na trama, ele jogava o búzio ao chão, cabendo a este artefacto decidir se o personagem morre ou sobrevive. Quer dizer, como se uma narrativa fosse um amontoado de pequenos desfasamentos. Tanto show off! A gente escreve, sim; dedica-se mais do que o cidadão comum, sim; tem imaginação provavelmente mais fértil, sim. Mas, por favor, isso é um trabalho como qualquer outro. Não é por mal, mas bem que podíamos poupar a sociedade de carregar para nós tão pesado palco imaginário.
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Diário: SÓCIOLINGUÍSTICA DO PASSEIO

Investi metade da tarde de ontem no centro da cidade do Lobito, deambulando como exercício de "queimar tempo", um pouco por incompetência de certa agência bancária, onde suportei longa fila até ouvir que "o colega que atendia Western Union saiu para almoçar, passa mais logo ou então amanhã". Procurei saber daquela simpática senhora que me atendeu se o banco fecharia caso o colega estivesse doente, ao que respondeu, a contra-gosto, que não. Bem, como discutir não me resolveria o problema, saí ao encontro da celebração da vida que é no fundo o quotidiano, os diálogos fortuitos e a observação de imprevisíveis fenómenos sociais. Numa rua da Zona Comercial, passo por duas senhoras, nessa mania muito angolana de estorvar o passeio. Uma era funcionária (em pé e de passagem), a outra mendiga (sentada, encostada entre a árvore e a parede). Era grande a empatia. A funcionária elogiava a bebé da mendiga, num registo de diálogo coloquial e terno, na língua Umbundu, que a seguir reproduzo, ciente embora da poesia que se perde com a tradução:
“Avoyo, mba wakula!” – Vejam como está grandinha!
“Oco, wakula!” – É, está mesmo grande!
“Omõlã mba ka vala!” – A criança não custa!
“Ocili, omõla ka vala, civala ño imo” – É verdade, o que custa mesmo é a gravidez.

E lá continuei a caminhada com a certeza de que algum troco a funcionária deixaria para a mãe da bebé, sem deixar de especular que o pai da criança, algures na cidade, aguardava pela esposa que faz da mendicidade o posto de ganha-pão.

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Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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