terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Crónicas da via: ONDE DAR BOLEIA DÁ DESPESAS

Descontada a atenção que deve ser convencionalmente dedicada ao tráfego, era de se dizer que o motorista só tinha ouvidos para a Rádio Benguela, que transmitia em directo entrevista sobre uma associação embrionária em torno da causa do albino. Na primeira pessoa, o professor Barroso não estava ali para as habituais dicas de língua portuguesa, mas para tratar de algo sensível como a própria pele: o albinismo, suas implicações físicas e os preconceitos a ele associados, tendo como pano de fundo a afirmação social.

Ao passar pela pediatria do Lobito, um dedo em riste destacava-se. Pé ao travão, carro efectivamente imobilizado uns quinze metros adiante. Devia estar aflita a jovem, que aparentava não mais de 30 anos, moradora do centro da cidade. Lá vão os tempos em que o pedido de boleia era pelo gesto do braço levantado. Ultimamente, as meninas levantam mais é a beleza aparente, ou seja, já só puxam os lábios para trás, contraem os músculos do corpo inteiro e se curvam ligeiramente, a tal dita posição de perfil.


Por instantes, o motorista via-se arrependido, já que a moça seguia a passo de camaleão em dia de ócio. Pronto, que remédio! Finalmente, ela puxava a porta: “Obrigado, moço, ya?”. E ele teve de alterar o guião, pois esperava que saísse um “bom dia”, de início. “De nada. Põe o cinto, ya?” Indisfarçável era a sensação de conforto, pelo ar condicionado. Lá fora, a temperatura ambiente andava acima de 30ºC. “Põe o cinto de segurança, ya?” Ela, que disse que sim, priorizou um telefonema, na lentidão já descrita. O motorista, enquanto isso, decidiu não arrancar. Por fim, ela colocava o cinto.

“Vais aonde?”, indagava ele. “Vou até na Direcção do Porto”. O itinerário coincidia, ele tinha de estar em quinze minutos na Restinga. Em intervalos de dois minutos, ela telefonava para um mesmo número, em tom de cobrança, dando a entender que havia combinado com um compatriota com nome de uma cidade americana.

O gelo, no carro, foi quebrado ao passar pela unidade de Bombeiros. “Tens carregador do carro, meu amor?” Admitindo a hipótese de não ter escutado bem, o motorista respondeu, insuspeito: “Não, não tenho.” E continuava a rapariga: “Meu amor, tens um pouco de saldo, só para ligar para o meu pai?” Conhecendo-se mau mentiroso, o motorista evitou o contacto visual. “Não, não tenho. Vou resolver algo na Restinga e só depois vou parar para comprar saldo”. O motorista via-se obrigado a recordar, no silêncio, de quando certa boleiante, posta no destino, pediu uma nota de cem kwanzas que estava no cinzeiro. “Moço, posso levar para apanhar kupapata?”

Nessa altura, ele topava com pequena surpresa. O frasco de sumo de múkwa, que a moça trazia, entrava em cena. Uma vez, duas, ia ela cuspindo ao gargalo. Facilmente se inferiria que havia ali um princípio de gestação. “Foste ao hospital visitar alguém?” Ela, como que submetida a uma pergunta descabida, completou com um veemente “não!”

Uma vez na Direcção do Porto, o motorista pára pela estrada principal, cerca de dez metros do edifício. “Meu amor, não entras?”. Pronto, e lá ia ele em direcção ao parque, bem à porta mesmo. “Obrigada, ya?” E assim desaparecia a desconhecida pelos degraus.

Gociante Patissa, Lobito, 18 Fevereiro 2014
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