sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Turismo interno – CRÓNICA DE UM REGRESSO ATRIBULADO


São 8h00 quando devolvo a chave à recepcionista do Hotel Moçâmedes, que procura confirmar: estás a fazer “check up?” Franziu-me o instinto a testa, não por saber que o correcto seria “check out”, mas pela fresca memória do termo, ou não tivesse passado, pelo emprego, por vasta bateria de exames médicos e no final ouvir apenas que devia comer mais peixe do que carne, como se fosse outra a minha opção… 

Faço a viagem entre o Namibe e o Lubango com a agridulce Serra da Leba na mente. Admirar aquele símbolo turístico é uma coisa, serpentear-lhe a espinha por mais de vinte minutos de adrenalina ao pescoço é outra. Embora contrário ao plano original, estava fora de questão o regresso pela via da Lucira, ou então o carro não sobreviveria a tanto solavanco, acreditava eu, longe de imaginar que o pior estava ainda por vir. 

São 10h45, quando descrevo a rotunda da Nossa Senhora do Monte, a caminho das cascatas da 
Tundavala para fazer tempo. Para compensar o cansaço e as poucas horas de sono, justifica-se um almoço convencional no Lubango. Entretanto, trágica notícia viria a levar-me a abortar a meio do percurso o improviso. 

Na noite anterior, protectores físicos da firma Alvejamba, que guarneciam uma padaria, flagraram um cidadão (não identificado) em tentativa de assalto. No local, o alegado meliante foi fortemente espancado, tendo sido de seguida transportado à sede da empresa, onde continuou a sevícia com descarga eléctrica à mistura, resultando disso a sua morte. Na fria madrugada, o director de operações que, já sob custódia, reclamava inocência, confessou ter só ordenado e também supervisionado que a carrinha descartasse o cadáver na Tundavala, para despistar provas, por temer represálias. 

A meio a tristeza, o caminho de volta à cidade recompensa com o encontro com duas gigantes avestruzes, muito dadas a posar para a posteridade. Segue-se o almoço, peixe liro grelhado do bom, e a partida às 14h00. A chegada deve ocorrer às 19h00, assim prognostico, sem imaginar que os 400 km engordariam para 700 km. 

Passada a localidade de Kakula, começo a estranhar a oportunidade de conhecer tantos lugares, aonde não
 me lembro de ter antes estado. Mas como a sinalização indica Estrada Nacional 120, Kwima e Kahala, lá vou eu em frente. E na ausência de mapas, ajuda perguntar os peões, costuma resultar. É o que faço em Kalukembe. Aí em baixo tem caminho para Benguela, mas não sei se teu carro passa; o normal mesmo é ir como vieste, responde-me um moço. Mas logo noto que se trata de trecho morto. O desvio é no Litumbo, entre Kahala e Benguela, assegura outra senhora. Posto isto, sigo. 


Depois de Kakonda, adeus ao Asfalto. Algo vai mal, penso eu. Atravesso mais aldeolas, e por um momento alivia-me ver um autocarro com reclames de Benguela. O disco toca mal em função dos solavancos. A única frequência é a 88.5 (Huambo). Aos últimos acordes da música de Jacinto Tchipa, o locutor em língua Umbundu diz que o autor nasceu aqui perto, na localidade de Katata, aonde por coincidência eu passava. 

Apago ciclicamente as luzes do carro, na esperança de divisar uma zona residencial no perímetro. Em vão. Começo a ficar desorientado. Não se vê carro da altura do meu no troço, apenas carrinhas Canter, camiões, alguns Hiaces, numa média de um cruzamento em cada meia hora. Passam das 18h00, atravesso mata desabitada, com parcos focos de fogo, se calhar de produtores de carvão. Se me fura a roda, ou se o combustível se esgota… começo a temer o pior. No rádio, ouve-se Puto Português a ‘sconfiar que o mundo está a acabar. Mas, por favor, não comigo ali; que aguarde mais um pouco. 

Pouco depois de enfrentar a assustadora ponte sobre o rio Kalai, uma das matérias do Vector Informativo, do amigo Atanagildo Paulo, aborda a inconsistência técnica na onda de potenciais poetas. Ouvem-se o Lara, o Chico Pobre e o Director Provincial da Cultura. Conheço-os a todos. Havendo cobertura telefónica, decido lançar um subtil grito de socorro para que o Lara me dê uma ideia da distância em relação ao asfalto, informação que de qualquer modo ele não tem. O desvio certo para Benguela é em Kakula, não tinha que vir por Kalukembe, diz-me. É tarde demais para regressar. Manda-me uma mensagem a dizer que Katata dista cerca de 50 km do Kwima. 

Depois de muito andar, avistam-se luzes. Bombas de combustível. O troço piora a quinhentos metros da luz. O carro estagna, tal é altura da terra mais as pedras que esta esconde. Dá a sensação de morrer-se de sede a escassos metros da fonte. Por fim, o avanço. 

Agacho de pânico para tactear os pingos de óleo. O mínimo calor seria o trágico sinal de cárter partido. 
Falso alarme. Aqui é Kahala? Estás a 50 km de lá, isso é Kwima, desengana-me o moço. Entrego-me, finalmente, ao conforto de um asfalto impecável. São 20h00, quando compro na sede da Kahala uma bebida supostamente energética. 

Às 22h30, passo pela Ganda, onde se vêm jovens em pacíficos copos e pinchos. No Cubal, quase tudo dorme, excepto um coelho que se mete na estrada, a passos diplomáticos, impondo uma brusca paragem. Longe de mim procurar problemas de estado, que aquele pode ser, se já não é, primeiro-ministro de algum lado. Perigo iminente vê-se entre Kaimbambo e Katenge, com o gado a pastar na berma escura. 

À meia-noite, dá-se o final da aventura de 1200 km em dois dias, seis horas mais tarde do que o previsto, tudo, por culpa do erro de opção. A jornada de regresso foi bem mais complexa e fisicamente desgastante. Estou bem, o carro também. Vale a memória! 

Gociante Patissa, Benguela, 12-13 Setembro 2013 
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