sábado, 8 de junho de 2013

Crónica: QUE AO MENOS SORRISSES, MEU AMOR!

Podendo soar paradoxal, lá está, presos que andamos a objectivismos e metodismos, ao contrário da essência aparente das coisas, são os detalhes que fazem a vida.

Imaginemos que, dando provimento à já crónica indolência ao fogão, me desloco ao Café da Cidade atrás de um copo de leite com bolinho. O que não seria de todo justo, porque redutor, era colocar os mantimentos no centro, ignorando todo um processo à volta durante a meia hora que se permanece na esplanada. Então, e a conversa em tom alto da mesa ao lado - geralmente sobre desporto e política -, os veículos que, como os transeuntes, volta e meia transgridem as regras de trânsito, a empatia das meninas que me atendem, o amarelo da banana sobre a cabeça da zungueira, o nariz que não devo torcer pelo cigarro alheio, uma vez estar na zona de fumadores, tudo isso é secundário? E sem dar por isso, até já conhecemos o rosto do guarda, o pregão do mendigo.  

Hoje, a conversa avulsa girava em torno da entrevista televisiva do Chefe de Estado à SIC Internacional, com os imagináveis prós e contras, nem sempre bem fundamentados, entrevista que aliás não vi, não tendo a parabólica instalada em casa, muito menos electricidade. Retive a exclamação de um cidadão português, na casa dos 50 anos: “O homem é muito inteligente, pá! Sereno, descontraído, e domina o idioma perfeitamente!” Ora, numa entrevista marcada pelas agendas social e política, aquela reacção é, quiçá, inesperada. Mas não será o marketing uma colecção de detalhes?!

Já bem no final do manjar, minha atenção foi desviada do papo para registar algo melhor. Quatro jovens, classe média alta, digamos assim, um deles com linda bebé ao colo e outro com o braço engessado, vinham em nossa direcção. O que faziam? Estando um deles recuperado do tratamento ortopédico por lesões que se imaginam de acidente de motorizada, fizeram tenção de doar discretamente a sua cadeira de rodas a um rapaz, paralítico de membros inferiores, que passa o dia a pedir trocos à porta da loja.

Os limpadores de viaturas, as meninas da loja, o segurança, clientes e curiosos juntaram-se para o pequeno, mas histórico acontecimento. Meu Amor, como é tratado pelas meninas o beneficiário, não se mostrou entusiasmado. “Não queres?”, indagou um dos doadores. “Há milhares de pessoas que gostariam de ganhar isso”, repreendeu uma menina da loja. “Pede obrigado”, disse o guarda. “Que ao mesmo sorrisses, Meu Amor!”, insistiu outra. Entretanto, só depois de os benfeitores se retirarem (sem dizerem como se chamavam) é que Meu Amor disse a trejeito: “Isso cansa!” Mas logo veio a réplica da assistência: “Cansa mais andar de se arrastar no chão, ou no carrinho?!"

A reacção de Meu Amor lembrou-me o calor dos debates num seminário em 2005 sobre a abordagem baseada no direito contra a baseada na necessidade. Defendia-se que a primeira é concebida levando em consideração a opinião e vontade do beneficiário, ao passo que, na segunda, o doador presume com base na sua própria crença do necessário. Partilharam-se, na ocasião, exemplos de instituições que construíram latrinas para comunidades de deslocados, desconhecendo que, em alguns povos Bantu, os anciãos mantêm tabu sobre suas necessidades, defecando o mais distante possível de casa.

À oferta desinteressada de hoje, sim, “que ao mesmo sorrisses, Meu Amor!”

Gociante Patissa, Benguela-Lobito, 8 Junho 2013
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