sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Reflexões literárias: Apresentando o livro “SEXONÂNCIA – o momento pós-catarse”, poesia de Bangula

Quando me foi solicitada a apresentação formal do livro de Martinho Bangula, despertei para a ingrata missão que me esperava, sobretudo pela proximidade que tenho com o autor. Toda a opinião é uma qualificação; nem mesmo o silêncio pode ser tomado como absolutamente neutro. Se tecer elogios, fica suspeito. Se criticar, fica igualmente suspeito. De qualquer jeito, resolvi aceitar. Para tudo há uma primeira vez, e viver é outro risco.


O nome Bangula deve ser corruptela (por imposição do colonialismo português) de “[ame] mbangula”, em Umbubndu, conjugação do verbo falar/conversar na primeira pessoa do presente do indicativo – qualquer coisa como “[eu] falo/converso”. Não estranhemos, pois, que o rapaz nascido em Benguela, no ano de1985, tenha o bicho da comunicabilidade.

Depois de “SEXORCISMO – poesia para a purificação”, lançado em 2008, Bangula surge agora com “SEXONÂNCIA – o momento pós-catarse”. Dada a aparente insistência, em termos de eixo temático, o que quererá o autor dizer-nos, andando tão perto da raiz “sexo”? O leitor ou a leitora pode legitimamente levantar essa pergunta, já que ambos os títulos são aglutinação do conceito sexo com exorcismo e ressonância. O passo a seguir, de tão imediato que é o juízo humano, levará a deduzir que se trata de poesia de forte pendor erótico. Por exemplo, com isso de “SEXONÂNCIA – o momento pós-catarse” concluiríamos que o autor nos quer reforçar aquela ideia segundo a qual “o amor só se mede depois do prazer”. Mas lá vem a regra de ouro que diz que “não devemos julgar o livro pela capa”.

Quanto à forma, temos outra vez o poeta a desafiar o comum, ao apresentar-nos capa sem ilustração, apenas uma cor homogénea e letras, à excepção da própria foto na contra-capa. Os poemas têm números no lugar do título. Pretende-se, diz ele, dar lugar à criatividade do leitor. Só que como escrever não é apenas criar, mas também trabalhar a palavra, as coisas acabam por se encaixar, às vezes até fora do controlo do criador. No livro “SEXONÂNCIA”, a primeira linha de cada poema pode muito bem funcionar como título. Para mim, palavras são recados, os números uma repetição apenas.

Mais adentro, vemos que sexo é apenas pretexto para o sujeito poético partilhar com o mundo as incongruências do cosmos. “Viver é um luxo, existir basta”, diz na página 39. Com o inconformismo do seu tempo, temos o poeta em ciclos de “cruzar mares, desafiar ventos”. O sujeito social logo se junta à magnanimidade da sua gente, na página 59, como que a dar ao homem oportunidade de recomeço: “Já libertamos tudo/ o opressor/ o oprimido”.

Certos erros ortográficos no livro afectam o sentido uma vez ou outra. As gralhas podem ser indicadores das debilidades que o mercado editorial angolano enfrenta, onde a oferta de serviços é limitada, sobretudo em realidades fora de Luanda. Está-se sempre a correr contra o tempo, o que afecta tudo, inclusive a revisão. E eu sei bem o que é isso!

Queria terminar apresentando dois poemas que estão no livro… sem estarem como tal. Leiamos somente as primeiras linhas de cada poema, e teremos um poema feito. Seguidamente, leiamos apenas as últimas linhas de cada texto, e sairá outro. Como disse, uma vez que escrever não é só criar, mas também trabalhar a palavra, as coisas acabam por se encaixar, às vezes até fora do controlo do criador. Afinal temos mais dois poemas! O leitor que descubra outras surpresas. Muitos êxitos para o escritor Martinho Bangula!

Gociante Patissa, Benguela 10 Agosto 2011.

Meia centena

Por mil anos alma e espírito
Serena tempestade
O tempo finalmente se abre
Interrogações atléticas
Os ombakistas contemplam impávidos

Prostrado diante de ti
Sete anéis dourados
Quem assim como Herodes dá o brado
Luzes
Quem me dera ser um poeta lírico
Coração selvagem esviscerado

Quando a madrugada se atrasa
Meus olhos sobre o mar
Sou treva e sonhos pervertidos
Talvez…

Exauridas madrugadas
Das gangrenas seculares
De véu e grinalda branca
Das profundezas daqui
Na sombra do provir
A porta aberta não indica o caminho

Quando o insano pensamento
A garrafa desenhada nas noites
Aqui na terra o tempo se quebra
Cordas suspendem os corpos
Daqui ninguém nos arranca

Há tanta desolação neste lugar
A barca velha se esguelha pelo mar
A praça está cheia de nuvens
A dor voa livre como o tempo

Parti de lá com medo de voltar
De onde venho não existem mais homens
Desço a marginal da esperança
Cansado, cruzo horizontes distantes
Fecham-se as portas dos céus
Que passe já este mundo
Demito-me!

Três noites e três dias
Sobre o dorso encurvado do homem
Agora que podemos, finalmente, falar
Eis que me deito sobre o manto imaculado
De súbito a ampulheta parou
Sou voz rouca amadurecida
Na triangulação dos dias
Agora que se fez manhã
Voei
Nestes dias de fim de tudo e sem sol
Apesar de tudo continuo o mesmo

Uma vida assim desiludida, cresce
O que se vende aqui, compra-se lá.
  
(sequência das primeiras linhas dos poemas de Martinho Bangula, in «SEXONÂNCIA – o momento pós-catarse», edição do autor, Benguela 2011. Compilação e título por Gociante Patissa para a cerimónia do lançamento do livro, em Benguela 12/08/11)
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4 Deixe o seu comentário:

Nelson Sul D'Angola disse...

Infelizmente não pude adiquirir o SEXONÂNCIA no dia do seu lancamento. Alguém estará a pensar que fiz uma ultrapassagem a direita para aquisição do livro do também "amigo meu" MARTINHO BANGULA. Ao autor do SEXONÂNCIA prometo que na próxima semana irei contacta-lo para autografar o meu exemplar.

Ao manu Patissa, um grande abraço!

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Valeu, companheiro Nelson Sul D'Angola, sempre a considerar.

Wanasema disse...

Boa apresentação, Gociante! Parece-me interessante este SEXONÂNCIA.
Abraços!

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Obrigado, caro Riso, é desculpar por só hoje "reagir". Uma boa semana para vc

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