domingo, 22 de maio de 2011

Conto: "Os Três Braços do Rio" in «A Última Ouvinte», UEA&Gociante Patissa, 2010


 I

Os filhos viviam perguntando, chateando mesmo bem dizer, o pai a ver se arrancavam deste o motivo — a mínima pista que fosse — que fez com que não fossem, eles também, uma família católica, e por tabela, sem a mordomia de se confessar ao padre e saborear hóstias.
«A mesma chatice outra vez?», refilou no mistério da sua cabeça e não respondeu mesmo velho-Kamuku, como nunca aliás o fez. Simplesmente, resolveu o problema disfarçando. Se calhar não sabia ao certo qual o motivo, ou talvez evitasse remoer memórias inconfortáveis, já que «não se pode descer duas vezes a mesma água do rio». Mais velho é assim mesmo. Se os filhos perguntam o que não convém, nada diz; se não perguntam, lamenta que ninguém se importa em aprender, que a juventude hoje anda perdida.
Os dias amontoavam-se no vaso da história, como peças de missanga no fio. Velho-Kamuku percebia com nostalgia o diminuir do vigor sem nada poder fazer contra. E não era o tempo o único responsável pelo desgaste. Também a vida não fora muito generosa com ele.
Muito cedo perdera a esposa, tendo que cuidar da educação de quatro filhos, o Sipata, o Lumingu, o Moko e a Sambele, sozinho. Resolver a maka da roupa suja, dos piolhos, das bitacaias, do ranho e do makulu. E como se isso fosse lá maçada de pouca envergadura, tinha o velho de cuidar também da lavra, dos porcos e dos leitões, dos patos e das patas, das galinhas, dos galos e dos pintainhos, dos ovos, dos pombos, das ovelhas, dos bois, do leite das vacas e dos cabritos. Era a velhice de pai e a velhice de mãe numa só pessoa.
E via, com elevado sentido de triunfo, chegar a altura certa para reforçar a preparação dos herdeiros. O primeiro estava quase a trintar e o segundo tinha dois anos menos. Em condições normais já estariam
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casados, mas o templo andou encerrado por muito tempo. Sambele, única menina e a mais velha de todos, era praticamente uma mulher talhada para esposa com a perda prematura da mãe.
Como sempre fazia, quando um dos meninos estragasse algo ou houvesse uma boa-nova a transmitir, velho-Kamuku improvisou uma reunião familiar. A diferença, desta vez, era a inclusão da menina. Normalmente,
a conversa com ela era só a dois, ou então, para questões melindrosas, entre ela e uma das tias.
Sentados à volta da lareira do onjango-cozinha para desafiar o frio da época, que enchia de cieiro as pernas e as bochechas, dirigiu-se o pai aos filhos:
— Meus filhos, chegou a hora de dar as boas vindas a um visitante que ninguém gosta, mas que não se foge. Se estão a ver que o vosso pai adoece todos os meses, isso, não é só da idade. É a morte que está a mandar recados. E devo pagar a minha última dívida, me despedir de vocês, como sempre fizeram os nossos antepassados. Assim faço a minha parte, levo o cavalo ao rio e ele bebe água quando quiser. Por isso,
quero pedir um favor.
— Peça, pai, que nós o faremos! — garantiu Sipata, que era o mais velho entre os rapazes, e legítimo porta-voz dos restantes.
— Quero que sejam um rio. O fogo não, porque apaga. O vento não, porque não tem direção. A noite não, porque depende do dia. O dia também não, porque tem pena, ameaça ir, mas acaba por voltar sempre. A lua não, porque, por mais belo que seja, o luar é morno e não tem a frontalidade do sol.
— Temos de ser um rio, pai? — indagou Sipata, franzindo a testa, algo surpreso com a aparente atitude de resignação sugerida justamente pela pessoa que sempre se mostrou pró-ativa. Ao que o velho confirmou
acenando, enquanto com os filhos partilhava a saborosa ginguba que estalava na frigideira de barro. Ainda inconformado com a proposta, o filho continuou:
— E se fôssemos como a chuva, que nos enche o rio de água e rega a lavra? — contrapôs ainda Sipata, que tinha o estatuto de mais velho e guia dos irmãos, enquanto Sambele, esta sim, a mais velha de todos na idade, observava o debate entre os homens da casa, ansiosa por mais uma lição a acumular com o desfecho. — Gosto mesmo é da chuva, pai.
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— Quero que sejam braços de um mesmo rio. Ao contrário do mar, o rio não é agressivo. Sabe ser maternal, humilde, alimenta e vence a sujidade com a água. Já o mar, este, perde-se na vaidade da grandeza,
mas a verdade é que não tem nascente e é sustentado por rios. E, na sua ganância, não sabe dizer chega; recebe de tudo o que é rio, até não aguentar mais de congestão e engolir casas e pessoas. Também não quero que sejam como a chuva, que só faz o que lhe apetecer, como se as preocupações dos outros não contassem. Ao contrário do vento, o rio sabe contornar obstáculos e chegar ao destino. O rio carrega nas
suas águas o barulho do dia, o silêncio da noite, e os segredos necessários para evitar confusões. E por mais que tirem da sua água, não acaba.

Vejam bem! Uma coisa é serenidade, que nem a do rio, outra coisa é passividade, como a do lago. Não quero que sigam o lago, porque é traiçoeiro. Finge ser ameno, mas sustenta sanguessugas. O lago é enganador, porque usa a acalmia hipócrita da água turva para acumular tesouros no lodo sem esforço nenhum. As águas silenciosas são as mais perigosas, não se esqueçam disso. Prefiro que sejam como o rio, que nasce pequeno, não se queima com o sol e é determinado.
Velho-Kamuku não era de explicar com clareza as orientações. Os filhos aprenderam, desde muito cedo, a interpretar as parábolas do pai.
Os três rapazes, os visados pelo recado, acataram o desejo do pai. E unidos pelo afeto, seriam, daí em diante, os três braços do rio. À irmã, nada de específico foi recomendado, porque o mundo todo sabia que ela estava mais do que preparada para o seu destino, o de ser respeitável trabalhadeira esposa. Tinha também duas tias que eram excelentes em formatar meninas para o dever sagrado de se entregar ao pai dos filhos.
E o tempo encarregou-se de traçar o percurso para cada um dos três braços do rio da nascente do velho-Kamuku.
O primeiro resolveu ser pastor de igreja. O rio da fé. Ficou conhecido como Reverendo Sipata, e perdeu-se em missões de evangelização. Nunca mais voltou à aldeia. (Missionário é como político. O único local que conhece é o de nascimento, onde vai morrer já ninguém mais sabe.)
O segundo filho, Lumingu, que não conseguiu estudar, decidiu ser caçador e esperar ao lado do pai pela chegada do visitante desagradável, a morte, que viria com a velhice. Fez-se rio da coragem.
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Moko, o caçula, decidiu tornar-se médico e nunca mais voltou à aldeia. (Médico, político, missionário, é tudo farinha do mesmo trigo, tudo peregrino!) Sambele, a menina, teve a felicidade de se casar pela igreja. Não faltou pretendente honesto para uma moça que, como ela, era formosa e tinha a fama de bem-educada, trabalhadeira, ativa no grupo coral, e o resto era lucro.

II

A velhice passou, pouco a pouco, a engolir a força do velho Kamuku, que agora tinha como recompensa os cuidados do seu segundo filho, que era admirado na aldeia pelas suas grandes caçadas. Era só com ele que as moças todas da aldeia sonhavam. Mas não passava de sonho, posto que, para ele, só era digna de se considerar bela moça, a que frequentasse a igreja.
Mas havia uma menina muito distinta das demais, tão distinta que ninguém via valor nela, exceto o caçador Lumingu. A menina era franzina e alta de estatura. Chamava-se Kumbi. Por ter um cabelo liso, algo raro na aldeia, era alvo de muita zombaria, fosse de manhã, de tarde, ou de noite. «Cabelo de porco, lá vem o cabelo de porco… huim, huim, huim!!!». Os meninos divertiam-se à brava, grunhindo, quando a vissem passar. Ela só desviava o olhar, como se nada ouvisse. Era, por ironia, a moça de «cabelos de porco», a pretendida do jovem caçador. Mas a vida é uma justiça de porcaria. Um dia tu rejeitas, outro dia é a ti que rejeitam.
Certo dia, estava ela a voltar do rio. Balde à cabeça, cabaça na mão. Suas tranças pouco sólidas de cabelo liso, como de costume, desfaziam-se por causa do vento e do peso sobre a cabeça. Lumingu, que no mesmo instante se dirigia ao rio para tomar o seu banho, desviou-se do caminho para dar prioridade à Kumbi. Esta agradeceu, mas sentiu-se contrariada, e hesitou, dado que era obrigação da mulher ceder a prioridade. E nesse impasse, Lumingu encheu-se de coragem para se declarar:
— Epá, há algo de que lhe preciso falar. — Tanta era a timidez para dizer estas palavras que, sem dar por conta, tinha os dedos do pé a cavar o chão. Estivesse ele em casa de alguém, seria rotulado de ociliangu, porque as pessoas consideravam aquilo hábito de bruxos.
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— Comigo? Que mal fiz?
— Nada estragaste, Kumbi, preocupação é do meu lado.
— Diz depressa, que tenho trabalho, Lumingu.
— Gosto muito de ti…
— Maldito sejas! — cuspiu, furiosa, o que lhe veio à sua lindíssima boca, ingénua como a dona. — Vai comer cocó, mais é!
Comer cocó, ele não comeu. Mas os dias que se seguiram, sinceramente, não foram de sabor agradável. Ela metia-se em fuga logo que o visse. Não raras vezes, cometia o exagero de inventar caminhos (e não havia picos que a fizessem voltar à rota original). Não era normal uma menina de boa educação fazer amizade com homens. Não era mesmo!
Lumingu, feito louco pelo amor que o queimava o peito, fez tudo ao seu alcance para voltar a falar com a moça, mas em vão. Às vezes, já não sabia ao certo se era mesmo por gostar dela ou para se vingar só do desprezo.
No outro dia, ia levando umas boas vergastadas do Sambalanda, primo da Kumbi — de um parentesco só de desenrascar, tipo o do brinco e a orelha. Sambalanda andava farto de ouvir queixas de que alguém vivia cercando a prima. Só não apanhou tareia por ser filho do velho Kamuku. E não ganhou para o susto com esse estatuto. «Será que por mim nada sente? Ou é medo do pai dela, pela fama que tem de muito nervoso?», pensava de si para si. Era mais provável caçar uma palanca negra gigante do que dissipar as dúvidas.
Como a aldeia não era lá muito grande, Lumingu dominava a rotina da pretendida. E até parecia que era omnipresente, uma sombra que não largava a outra, de tão aguçado que era o sentido de oportunidade — próprio de caçador!
Certa vez, calhou que ambos se encontrassem a seroar num óbito. O reflexo da luz da tocha brilhava nos olhos da Kumbi, luzindo como raios do sol de verão. O coração rebelde do Lumingu já não tolerava não ser o dono de todo aquele encanto. E irrequieto como galinha querendo pôr ovos, lembrou-se do conselho do pai, que sempre repetia: «a preguiça morreu de sede à beira do rio, com preguiça de beber». E arriscou:
— Por favor, vamos conversar, não me rejeites.
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— Não há nada para conversar.
— Aquela conversa mesmo que não concluímos naquele dia…
— Não te parece que ninguém morre para que os outros se aproveitem do óbito?
— Não me faças sentir culpado.
— Ah é? Então não estamos num óbito, não?
— Quero que sejas a mãe dos meus filhos.
— Então não acha que para serem filhos é porque houve uma mãe?
— Não é isso. É a ti que escolhi…
— A uma aldeia tão grande, como esta, não faltam moças lindas.
As tuas palavras é que são poucas, ou me viste com cara de quem gosta muito de homens?
— Estou sendo sincero. É a ti que eu quero…
— Pois eu não! Não me faças outra vez chamar o primo Sambalanda…
Restavam duas saídas. Pedir ajuda aos anciãos do conselho da igreja, ou então, abrir-se com um adulto para convencer os pais da pretendida.
Mas esses hábitos intrigavam o jovem, que era contra casamentos arranjados sem a vontade inicial da mulher.
Outras tentativas de conquista fracassaram, uma atrás da outra.
Mas caçador que é caçador de verdade, quando pega para conquistar, tem pontaria e persistência de deixar qualquer rival de mãos a abanar.
Passados seis meses, e uma vez esgotadas todas as palavras para negar, a moça despachou-lhe o SIM.
Se já foi penoso conseguir o SIM da moça, quanto mais fazer amor com ela. Era donzela de adiar, adiar e adiar mais, até o rapaz perder o número de «tampas». Mas por ter levado a sério essa coisa de ser rio, Lumingu era de uma paciência de comover e despertar confiança à namorada, a quem a idade e a virgindade tornavam árida e imprevisível.
Era como o mar: sorridente no branco da espuma, aconchegante, mas volta e meia rabugenta com o subir da maré, às vezes sem dar tempo sequer para sair da água. Foi assim até chegar uma noite de luar em que a brincadeira se prolongou madrugada adentro. Encontraram-se às escondidas no local de costume, o apertado quarto de pau-a-pique, atados de parte a parte
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pela vergonha de dar o primeiro passo. Só não sabia Lumingu que, antes mesmo do pôr-do-sol, já a rapariga não tinha dúvidas do quanto seria aquela a noite número um. Com aquele olhar de missionário irreverente, ele despiu-a com os olhos. Era nua que ela se sentia sempre que estivesse com ele a milímetros. Estremeceu de arrepios, fazendo balançar a blusa de seda, que parecia furar com o bico dos seios calibrados pela mãe natureza. Apagaram o candeeiro e amaram-se, perdendo ambos a virgindade.
E seguiram-se mais e mais vezes. Os momentos sublimes aconteciam, às escondidas, no lapso entre o jantar e a digestão. Tão depressa para não levantar desconfianças, mas tão intenso que deixavam as moscas do quarto tontas de ciúmes. O latir dos cães dava a ilusão de que o dono tivesse saído, mas servia também para abafar a gritaria do coito, enquanto o casal obedecia à libido na esteira de palha. Mas, algumas semanas depois, o que era doce viria perder o sabor. A moça estava grávida, quer dizer, antes do casamento. 


Era uma grande desonra à imagem da família, diga-se, a parte da menina. Não porque o caçador não quisesse assumir, mas porque era mau exemplo para o mundo, e serviria de desculpa para qualquer matumbo chegar, «comer e não comprar».
O pai da Kumbi, velho-Kutalika, cujo direito ao desabafo pelo infortúnio é indiscutível, exagerava na dose. Espalhava a raiva pelos alambiques e outras tribunas mais. No fundo, bem sabia ele que alguém sempre se ofereceria a pagar uns copos como forma de consolo. Vai daí que se aproveitava da situação enquanto fingia deambular para desanuviar. E pior do que a tautologia de moralistas daninhos, é existir ociosos com tempo para os ouvir. O pai da Kumbi, que mesmo a cochichar raramente se lembrava de falar baixo, estava na moda. Não raras vezes, distinguiam-se, entre curiosos, os pouquíssimos aldeões que já viveram constrangimentos similares.
Uns, sem dúvida a maioria, maldiziam por inveja. Era grande o desejo de ter Lumingu como genro. Outros, porém, atiçavam por pura vingança. Com a gravidez, rompia-se o segredo do namoro, apanhando desprevenidos até os mais eficientes fofoqueiros.
De um momento ao outro, Lumingu tornou-se tão desprezado, que nem mesmo as suas glórias de caçador escaparam do empurrão à 52 | A Última Ouvinte
sarjeta da moral coletiva. Tratado como um assassino, pois era assim que se sentia, viu desmoronar o carinho. E percebeu então que, na sua aldeia, gravidez antes do casamento enojava do mesmo jeito que o estupro.
Okutambela e okulomba em simultâneo. Óleo de palma, garrafão de kaporroto e outro de vinho tinto, dois panos, camisa e fato completo para o sogro, caixa de fósforos, maço de cigarros e cabaça de ocisangua. 
Estavam arrumadas as ongandalas. A comissão saiu rumo à casa dos pais da moça. Um njenjekulu, uma katumalela. Mais parecia um grupo de refugiados, de tão volumosas que eram as ongandalas. Apesar de não ser grande a distância entre uma casa e a outra, a viagem era, contudo, difícil. Porque do pai enfurecido podiam esperar tudo, até pancada. Mas, como o verbo era chegar, assim teve de ser:
— Dá licença!
— Faz favor de entrar!
— Saudações!
— Gratos! Sejam bem-vindos.
E lá se acomodaram na sala da casa grande, onde os esperavam o avô, o pai, a mãe, o irmão da mãe, e duas irmãs do pai da Kumbi. Seria de se considerar uma boa casa, pelo espaço, se não fosse indisfarçável o defeito de não ter janelas. A luz só podia entrar pela porta, o que geralmente incomodava aos visitantes — pelo visto, menos ao dono, que preferia antes não ter janelas a facilitar a vida aos ladrões.
E ao notar que os anfitriões nunca mais iniciavam o ulonga, como costuma iniciar a parte da mulher, que é o lado inferior, os visitantes sujeitaram-se à humilhação e romperam o silêncio:
— Mas estamos bem. Mas passou bem a noite. Mas não há nada de queixas. O dia está a crescer, é sinal de que é chegado o tempo de nos encontrarmos com os outros. Metemo-nos então a caminho, um passo atrás do outro, para vir mostrar que somos uma família de respeito.
Uma vez que a situação nos apanhou todos a dormir, comparecemos então para reparar o nosso erro. Trazemos nas ongandalas o necessário para okulomba e okutambela e levar a nossa mulher.
— Bem, mas ouvimos a palavra. Mas eu sou o pai do pai da criança.
Agradecemos o vosso gesto. Como todos sabemos, não é bonita Gociante Patissa | 53
gravidez de uma filha, ainda que fosse uma viúva, na casa dos pais. Mas, com a vossa vinda, e outra vez agradeço, vamos tentar reparar essa vergonha. Mas é bom também dar a palavra ao pai da criança. — insistiu ainda o avô. — Porque pai é a pessoa mais ofendida com isso tudo.
— Mas eu fico só calado, antes que cometa erro. Se calhar eu é que tenho sangue doce. Eu que, toda hora, toda hora, recebo convite para assistir os outros casarem as filhas… Olha o que aconteceu, olha meu lucro …
— Bom, mas estivemos todos a ouvir. Mas na minha qualidade de avô da criança… mas eu devolvo a palavra.
— Obrigado. O erro é nosso e não temos como refilar. Somos culpados mesmo, porque os nossos mais velhos já diziam, «mulher é como unha, acompanhada do dedo». Nossa palavra é única: sentimos a vossa dor, mas os problemas na vida não acabam. A coisa importante é que okulumbula não é doença. O tempo é uma coisa boa. Só uns meses, teremos bebé. Só mais uns anos, teremos alguém para mandar água.
Okutambela, okulumbula, ser esposa. Tudo muito estranho para a menina. Enquanto os homens acertavam, Kumbi ganhava da mãe as últimas tranças de solteira. Andava angustiada, cansada bem dizer, com toda essa confusão.
Tão boas mãos tinha a mãe a matar piolhos e lêndeas, que a noiva nem viu quando fechou os olhos e adormeceu, indefesa, encostada ao colo. A imaginação flutuou até reviver a noite em que conheceu corpo de homem pela primeira vez. A noite em que, às escondidas com ele,
foram egoístas ao ponto de precipitarem a «conquista da taça», o sangue virginal no lençol da primeira noite de casados. De repente, voltou a sentir as paredes mais íntimas num abre-fecha-abre-fecha como se abrem e fecham os diafragmas da máquina de fotografar, quando excitada pelo dedo indicador no botão. A mãe deixou-se ali estar como atalaia que cuidava do sono da sua menina. Enquanto entoava canções de ninar, serviam de compasso os agradáveis golpes com o nó do polegar.
Foi assim até anoitecer e chegar a hora da partida.
A mãe soltou uma lágrima, arrancada da ambivalência de quem não queria largar a filha, mas que sabia que prendê-la era contra a lei da vida. «Tão criança ainda, meu Deus, a minha Kumbi, já gerando outra 54 | A Última Ouvinte
criança!», desabafou no silêncio de mulher adulta. Soltou também a sua lágrima a noiva. «Como gostaria que a mãe estivesse sempre perto!», lamentou, e seguiu.

III

Quando velho-Kutalika decidiu arranjar mais uma ndona, a quarta mulher diga-se, contou com onjuluka para construir e cobrir a casa com o melhor capim que havia. Foram dois fins-de-semana bonitos de se ver. Mulheres de todos os tipos e feitios perfilavam, alegres e vigorosas, pelos caminhos da aldeia, à medida que iam e vinham do rio com água para confeccionar os adobes. Os homens levantavam as paredes. As meninas preparavam a comida e ocisangua e ocimbombo. Os piôs ajudavam no tempero dos ratos que, depois de bem assados, serviam de acompanhante para o lombi.
Agora que fazia parte dos homens casados, sem diferença por ser de okulumbula, o empenho do caçador na vida da aldeia destacava-se mais. Era filho especial, de andar na boca do povo. Só o sogro, velho-Kutalika, é que parecia não ver mérito algum para tanto carisma. Viu
sempre no genro um ser inferior, sujo peloerro de okulumbula.
Durante a cerimónia de okukuatisa epata, foi então que Lumingu descobriu que o sogro tinha por ídolo Mobutu Sese Seko. Tinha até um retrato do velho leopardo pendurado na sala. No imaginário do mais velho Kutalika — quase sempre distorcido pelo vício dos alambiques —, Mobutu tinha o poder de se transformar em fera onde fosse impossível passar como pessoa. Representava a grandeza, o aconchego, a elegância, um leopardo que arrumava o javali do Lumumba.
Ao jovem caçador humilhava não ser tratado como homem de verdade. E resolveu explorar o fascínio do sogro pelo leopardo. Estava à mão uma oportunidade de revelar a honra. E pensou consigo: «vou mostrar a esse sogro que não é coisa de homem enfeitar desenhos de leopardo, quando se pode encontrar por esta selva cheia uma pele real». Uma vez amadurecida a decisão, foi comunicá-la ao pai:
— Pai, amanhã eu vou à caça.
— Está, bem filho, não é este o teu ofício?!
— É! Mas vou caçar de verdade. Vou caçar um caçador…
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— Um leão?
— Não, pai, um leopardo.
— Para quê um leopardo, filho?
— Para provar ao sogro que mereço a minha mulher. O meu filho não pode nascer e vai ver eu, como pai, tratado como um rapazote entra dia sai dia. Mereço ser olhado como homem.
— Então tu achas que num leopardo morto se traduz todo o teu caráter, o teu valor?
— Não, pai. Só assim ele verá que, se fosse tão valente, como se gaba ser, não enfeitaria na parede da sala desenho de leopardo. Ele vai ter o maior presente da vida dele. Vou trazer a pele de leopardo. Uma pele com sangue.
— Tomei conhecimento, filho. Qual é a opinião da tua mulher?
— Não, pai, a ela nada disse. Entraria em pânico. Só falei com o
Rei e já me desejou boa sorte.
Velho-Kamuku não contestou. E sabia que a decisão do filho poderia comprar a própria morte. Mas, quem ensinou os filhos a seguirem o exemplo do rio, sabia que era chegado o momento.
E bem cedinho, foi o jovem Lumingu à selva plantar uma armadilha. No caminho de volta à casa, ainda conseguiu abater um coelho. Bem gostaria de ter uma manivela capaz de fazer o tempo passar de pressa até chegar a hora de verificar se havia presa a armadilha.
Passou a noite inteira a sonhar com armadilhas e leopardos. Não se lembrava bem, mas teve a sensação de ter sonhado com a sua morte nas caçadas. Só que não era supersticioso, e por nada deste mundo recuaria do desafio de caçar leopardos. Metade noite, metade manhã, saiu ele com a zagaia no ombro, cabaça de ocisangua na cintura e feixe de flechas em mãos.
Quanto mais avançasse, mais adrenalina espalhava. Havia muito mais silêncio no mato do que haveria nos lábios de defunto. Só os pássaros, que nunca se sabe se estão a vadiar ou à procura do que comer, violavam o silêncio com a improvisada orquestra de assobios. Era
cacimbo, época das queimadas. Até arbustos, que ainda há poucas semanas eram de um verde homogéneo, agora pareciam mutantes como camaleão. Ora verdes, ora castanhos. O vento batia seco e frio o lóbulo
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da orelha do caçador. Cada vez mais, ele avançava, cada vez mais, confiava na única companhia que podia ter, a bravura. 
Posto lá, a armadilha não estava no local. Quase suspeitou que tivesse sido furtada. Mas quem teria tal cobardia? Deu dois passos adiante e notou as pegadas e o rasto do bicho. Tentou seguir, mas um barulho atrás dele roubou-lhe a atenção. Deu meia-volta para ver, mas era tarde. Caíra num contra-ataque da sua presa, se é que se pode assim considerar. Num acutilante ajuste de contas, a fera atirou-se contra ele. Foram ambos ao chão numa luta onde tudo valia, até arrancar os olhos. Árbitro era o tempo, aquele que a tudo assiste sem se envolver emocionalmente, por isso o mais equilibrado dos juízes.
Como entardecia e Lumingu nunca mais voltava, o Rei mobilizou oito homens, para quem o mato já não tinha segredos, para uma missão de resgate. «Ukuenje wainda ocitakafeka2», pensava o Rei. Partiram os matulões para o mato deixando-se guiar pelo cão, que farejava o caminho do seu amo. O cão, que durante a viagem não parou de latir, latia agora mais e mais alto. Em frente não seguia, mas também não dava sinais de querer desistir da viagem. Só girava e girava e girava mais, no mesmo sítio, que parecia ter achado um tesouro. Estava o caçador ensanguentado, deitado ao chão sobre uma aba larga de sangue tão espesso, que parecia colchão de campanha. O corpo estava marcado eternamente pelos golpes da fera, qual retas e semi-retas traçadas por um desenhador bruto em papel vegetal. Os pássaros assobiavam quais agitadores loucos. Talvez não tivessem percebido que a luta já havia terminado a pedido da morte. O capim continuava quieto e caído pelo impacto da surra que aguentou entre dois caçadores, Lumingu e o leopardo. A dois metros mais ou menos, estava
estendida, também sem vida, a fera. Calçava numa das pernocas a argola da armadilha.
Neste instante, um corvo sobrevoou a aldeia. O Rei, que fumava o seu cachimbo, atirou-o ao lixo e disse que não era bom recado:
— Já a semana passada foi uma coruja, agora vai ser esse maldito pássaro? — desabafou, pressagiando azar.
2 O rapaz foi levado pelo fenómeno do desaparecimento misterioso.
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À noitinha, os oito homens regressaram com os dois bravos caçadores, quietos como manda a morte. O corpo do jovem foi levado à casa do velho-Kamuku, o do leopardo ficou na Ombala do Rei. O anunciador pegou no seu chifre para levar a palavra do acontecimento a todos os cantos da aldeia:
— Homens, velhos e crianças, escutem! Escutem o que digo. Temos uma grande perda na aldeia. Perdemos o nosso filho caçador! O filho do velho-Kamuku já não vai trazer carne. As viúvas perderam a carne. Nunca falo brincadeira, por isso acreditem! Vamos chorar o nosso filho…! Uá uê! Uá uê!
E veio gente de aldeias vizinhas chorar o herói. O Rei determinou uma semana de óbito. Os aldeões cantavam, dançavam, choravam ao mesmo tempo. E para tão distinta figura, a dança teve de ser diferente.
Ali inventou-se a dança Ukongo, que veio mais tarde ser também o nome da aldeia.
A viúva, grávida de oito meses, praguejava a sua sorte:
Tala ño imbo lya tokota loñoma3
Ndipula elie?
Ove, a’ngwe, sapuila soma
Nda ukongo, onjipaila ukongo ndove?
Mbi kawalilimbukili?
Olui etali watakata
Ongwe yacipanga
Pita kovaso, a sekulu yange, lovikuata
Teke limue tulisanga.
Ficaram por responder as perguntas da Kumbi, a pobre menina
que no mesmo ano perdeu a virgindade, engravidou, casou-se, enviuvou
e se fez mãe. A voz subiu, subiu, subiu, até incomodar a lua. O céu
3 Veja só como a aldeia se diverte com a batucada / a quem vou perguntar? / Ó leopardo,
explica ao rei / então, tu que és um caçador, vais matar um caçador como tu? / Será que não vos
reconhecestes?/ Secou-se o rio hoje / Foi obra do leopardo / Passa em frente, meu homem,
com os haveres / Que um dia nos vamos encontrar
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também solidarizou-se com o pranto da pobre viúva, vestiu-se de luto e retirou o luar. O enterro só confirmou o furacão.
Pela primeira vez na vida, velho-Kutalika reconheceu existir pessoa mais destemida do que o seu ídolo Mobutu, mais próximo do que podia imaginar. «Morria», contudo, de raiva por não poder apertar a mão ao genro e manifestar a sua admiração. Era tarde demais.
A viúva jurou nunca mais entregar o corpo a homem nenhum. Diz-se que ela se fechou como uma mata espinhosa apenas aberta ao filho, filho este, que também nasceu de maneira distinta: ao sentir as contrações de parto, saiu de casa sem dar a entender o que se passava.
Seguiu o caminho do mato até não mais ser vista. E no local da morte do marido, somente assistida pelos mesmos pássaros de assobios agitadores, trouxe ao mundo um forte menino. Surpresos, os familiares viram-na trazer aos braços o filho póstumo do caçador, confirmando que a coragem é imortal. Era enorme a alegria. Ao bebé deram o nome de Lui. Para defendê-lo, Kumbi chegaria a ser mais feroz do que dez leopardos juntos.
Com a pele do bicho fez-se um batuque e o que sobrou dela foi pendurado na sala do sogro. No batuque só podiam tocar pessoas que se tivessem destacado com actos de coragem na vida da aldeia de Ukongo, assim sendo, muito poucas.

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4 Deixe o seu comentário:

Val Du disse...

G. Patissa, ontem, comecei a ler esse conto, dei uma parada e continuei hoje. Rapaz! que conto lindo e emocionante, fui "viajando nele", foi como se estivesse vendo um filme bem feito.
É uma história muito rica, eu adoro esse tipo de narrativa.

Você não sabe como me fez bem vir aqui em seu blog. Tenho uma admiração e amor pela África, que vem de muito longe, desde que eu era criança.

Muito obrigada.

Abraços.

Carmem disse...

Beleza!!
Somos um grupo de amigas que temos em comum o amor pela África.
adorei o seu blog.

Beijinhos.

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Oi, Lita, é um prazer receber teu feedback relativamente a este conto inserto no meu primeiro livro de contos. abraço com calor de Angola

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Oi, Carmem, África agradece e deseja a si e grupo um abraço de cooperação.
Beijinhos retribuidos.

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