domingo, 31 de outubro de 2010

Crónica: "Brasil um pouco mais longe"

Que moral teria o dicionário para definir prostituição, se nada diz de dor no coração?

Melhor mergulhar na vox populi para sugar dela o molho do afecto, é que o dicionário não tem coração nem sente dor. Fica portanto explicado o porquê de definir ambos os termos com ocas palavras, como sempre acontece quando lhes falta a linguagem corporal… da empatia.

Uma amiga europeia define prostituição como sendo o «uso do corpo para obter benefícios». A outra diz desgostar que lhe toquem o ombro, excepto em ambiente íntimo, pese embora, como executiva profissional que é, procure disfarçar para não parecer antipática. A primeira alinha, e sentencia: «somos todas prostitutas, até certo ponto».

Já lá vai quase um ano, e o silogismo continua soando como canção inacabada no meu subconsciente. É como se tivesse sido concebido para ilustrar este conflito, muitas vezes não expresso, da maioria de angolanos – permitam-me arriscar na generalização estatística – que trabalham em coisas muito distantes de suas habilidades ou vocações.

Tinha eu 15 anos em 1993, quando consultei uma Foto. Precisava de trabalhar para custear os encargos escolares de quem andava na 7ª classe. Tinha já vaga ideia do trabalho em fotografia, graças à experiência fracassada de meu pai e seu irmão em investirem no ramo, em finais de 80. Pouco a pouco, fui dominando os segredos da arte, naquela época do preto e branco, quer atrás da máquina, quer na câmara escura. Porém o entusiasmo de aprendiz não sobreviveu a reincidentes excessos dos patrões, para quem sete horas da noite era ainda cedo para largar. Foi assim que entrei para o mercado do trabalho.

Em 1996 ganhei noção do que queria ser e podia fazer, se cruzasse com a oportunidade de aprender e experimentar. Mas não passei disso.

Em 1999 obtive certificado de operador de computador, mas não veio com isso a sorte de passar a funcionário, continuei sendo trabalhador no que posso considerar até hoje o pior emprego da minha vida, a Sonamet. Ganhava ironicamente USD 120/mês como ajudante de soldador, sendo na prática armazenista e interprete/tradutor de um superintendente francês, que era bom como chefe, mas também cobarde quando o assunto fosse justiça salarial e ascensão profissional. (“Há os que mandam e aqueles que pensam que mandam”, segundo destrinça de um certo dirigente angolano. “... E os que pensam em mandar e os que mandam sem pensar”, o acréscimo é de uma amiga do Blog Angodebates.) Dez horas úteis por dia, sendo que a alegria ficava fechada do lado de fora do portão, só sendo recolhida na hora de largar. Foi assim durante 22 meses. Daí fundei uma ONG, o que abriu portas para outras experiências, incluindo internacionais, e alargou o sentido de exercício da cidadania.

E é com alguma perplexidade que, 17 anos volvidos desde o embarque ao mundo do trabalho, me vejo forçado a abrir mão da primeira oportunidade de participar em conferência internacional como escritor, isso, para preservar o emprego actual e as benesses que ele implica. Um silêncio do alto bloqueia o dreno da dispensa, que devia acontecer até ao meio dia de 2ª feira, 1 de Novembro. Ficam sem efeito o visto e a comunicação há um ano preparada. Eu já devia saber que “a esperança é, às vezes, a mais cruel das ilusões”.

Alguns empregos são em muito comparáveis às drogas, sabemos que nos fazem mal, e até estão teoricamente à vista inúmeras alternativas, mas lá está o homem dependente da sensação de bem-estar. De facto "a liberdade é o direito que cada pessoa tem de escolher a sua própria opressão".



Gociante Patissa, bairro da Santa-Cruz, Lobito, 31 Outubro 2010
 
PS: "Outros dias e oportunidades virão", acaba de me dizer em jeito de consolo um confrade. Concordo, ciente embora de que outras oportunidades tanto poderão ser de êxito, como de desilusão, na medida em que "tenho vocação / tenho barriga / não tenho às vezes é como me guiar / quando não escolhem ambas o mesmo itinerário".
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2 Deixe o seu comentário:

Vissungo disse...

Amigo Patissa,

mesmo sem os detalhes (vinhas para um congresso de scritores? Onde? Promovido por que organismo?)lamento e me solidarizo com o amigo.

Grande abraço

Gestor do Blog Twayovoka disse...

Por que posso entender, a falta de compreção do patrão feriu. Já agora quem é a empresa, por que não abriram excepção se era bem da cultura?

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