segunda-feira, 28 de abril de 2008

Parabéns TPA ("Defenda as suas convicções, mas respeite a opinião do outro. Isto é democracia")

Num cenário arroga-se um adepto do Petro contra outro do 1º de Agosto, ao assistirem à partida entre os dois clubes rivais em basquetebol; noutro trecho está um gravador para um velho amante do semba, um miúdo amante do cú-duro, que colidem à porta do leitor. Noutra cena duas supostas cunhadas, uma do norte (que so faz funji de bombó) e outra do Sul (que prefere o de milho), brigam, cada uma dizendo ter o funji que mais alimenta. No final, encontram meio-termo e passa a lição: "Defenda as suas convicções, mas respeite a opinião do outro. Isto é democracia"

É recorrendo aos aspectos sociológicos e antropológicos dos angolanos e com linguagem e exemplos tão claros, através da dramatização sobre temas transversais, que a Televisão Pública de Angola (TPA) lança mais um contributo ao respeito pea diferença. Fica aqui o nosso merecido reconhecimento. Viva Angola, Viva a Paz!

Gociante Patissa
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sábado, 26 de abril de 2008

Opinião: Quando o volume das nádegas tende para identidade nacional

A Tri-Xu produções, uma referência obrigatória no mercado de promoção de espectáculos em Benguela e não só, vem provar que o lucro vence a virtude. Pela segunda vez realizou o concurso "Bumbum Dourado" (traseiro mais “apetecível”), para o delírio dos amantes da disbunda. Contudo, tal não comprometerá (ainda) o carinho conquistado através de iniciativas louváveis já demonstradas, como a liderança de campanhas de solidariedade, a exemplo do que se deu com uma menina evacuada para o exterior do país por problemas com o coração.

De resto, sem querer impor como objectivo a promoção de caridade, nem querer que os promotores de eventos façam papel do Governo, ainda assim muita coisa construtiva há a promover, que até custaria menos de 10 mil dólares norte americanos ou uma viatura, que foi o quanto se gastou nas duas edições. E de projecção, a organização não ganharia menos.

Até porque “Bumbum Dourado”, como festa temática não tem nem de original (estamos fartos de vê-lo no Domingão do Faustão, que figura entre o que de pior o Brasil exporta), nem de construtivo (puro ingrediente da futilidade, tendência “contagiosa” da nossa juventude e não só). “Ser” já não está na moda, o que vale mesmo é “ter, aparentar, dar que falar”.

«Se o outro trouxe “Ferrari”, por que é que não posso trazer um “Lamborgini”?», desafiava em alto e bom-tom um conhecido comerciante do Lobito, enquanto aguardava pelo pequeno-almoço na “Pastelaria Áurea”, naquela cidade ferro-portuária. Bom, não sendo proibido (nem por lei nem por tradição) o acto de sonhar, e sendo descabido nos termos da construção social discutir gostos, por mais bizarros que possam parecer, tanto o “Lamborgini” como o “Ferrari”, trazidos para uma realidade como as estradas de Benguela, parecem extremismos de ostentação.

Moralismos à parte, gosto de admirar a beleza feminina sempre que tenho a oportunidade. A sensualidade é linda e está espalhada por toda a anatomia quer do homem, quer da mulher. Agora, partir para o culto ao “cú”? Isso até parece aquela cena “pitoresca” de uma tal comunidade indiana que faz culto ao pénis, manifestação que inclui marcha pública com estátuas e cartazes visualizando o “sagrado veículo” masculino!

Bom, não vale aqui crucificar quem promove, porque, hoje, nenhuma sociedade progride sem o auxílio da iniciativa privada. O Tri-Xú, como qualquer outro promotor, está de olhos no lucro, investindo para convencer e, merecidamente, usufruir da adesão. Quem quiser participar da festa, paga! E, tanto estamos em presença do livre arbítrio, como dentro do que a lei permite (já a moral não sei tanto!). Para mais, é sensato constatar que a “doença” é da sociedade “materialista e sexista”, que tende a transformar tudo em objecto descartável do prazer, até pessoas, por conta da “glob(e)lização”!

Mas até quando, nós africanos, andaremos a promover, ainda que inconscientemente, atractivos que mais não fazem do que reforçar o estereótipo de que o “negro nasceu para o sexo, futebol e música?»
Os concursos de Miss, no que à história de Angola diz respeito, já deram vergonhas e escândalos que sobram. É ministro que tentou a menina, é o empresário que não dá patrocínio sem “tocar lá”, é comité que anula o título de quem se diz denunciar assédio sexual. Como ironiza um amigo, todos almejam possuir o “trofeuzinho milagroso” que faz de alguém “a mulher mais bonita do país”. Afinal, já se viu quase tudo, mesmo!

Claro está que entre “mostrar” e partir para o acto há uma ponte chamada “consentir/deixar, aceitar”. E como dizia uma amiga italiana, pessoa nenhuma tem culpa de ter sensualidade. Já agora acrescentando, é dever da pessoa escolher entre o essencial e o acessório quanto ao que quer vender como identidade/valor individual. Também é verdade que a eternização dos tabus em relação à sexualidade está longe de ser virtude, porém não é tão negativa como banalizar o sentido de pudor e o respeito pelo próprio corpo.

Lembro-me bem do desconforto de um conterrâneo nosso por causa de um elogio, que para muitas das “nossas” raparigas até soaria “doce”. Aliás, quantas não abanariam ainda mais o traseiro, mesmo num grupo coral de igreja, (exagero à parte) diante de tal galanteio? – terá pensado erradamente.

«Tu és sexy», disse ele a uma americana que mal conhecia, e a reacção não podia ser mais amarga. Quando indagamos o que havia de negativo na “cortesia” do rapaz foi então que a moça argumentou: «when someone says that you’re sexy, it means he wants to have sex with you» (quando alguém diz que você é sexy, diz por outras palavras que quer ir à cama consigo).

De facto, se investíssemos mais no intelecto e se esse fosse premiado, talvez olhássemos às pessoas mais nos olhos (perceber a beleza interior) e menos nas nádegas (ver sexo em tudo). Será a expressão sexual o que a mulher angolana deve exibir como sendo “valor comum”? Será isso o que a (já falecida) Lurdes Van-dúnem queria dizer com a sua música «Vale a pena ser mulher»? Atrevo-me a dizer que NÃO, NÃO, NÃO!!!

Mas esta é (apenas) a minha opinião. Por favor, não deixe de comentar.

Gociante Patissa, Restinga, Lobito, 25 Abril 2008
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quarta-feira, 23 de abril de 2008

Transferiu-se para a Direcção de Programas da Tpa... João Pinto saiu da Ecclesia

Dani Costa (Semanário Angolense, Edição Número 261 de 16 a 26 de Abril de 2008)

Depois de ter resistido a sucessivos acenos de responsáveis dos órgãos de informação estatais, o radialista João Pinto (JP), uma peça chave da Emissora Católica de Angola, está finalmente de malas feitas para a Televisão Pública de Angola (Tpa), conforme apurou o Semanário Angolense.

A posição do radialista, que abre um enorme rombo naquela estação radiofónica, é dada como irreversível, estando consumada a sua disponibilidade para integrar inicialmente a equipa que compõe a Direcção de Programas da única televisão do país, ao serviço da qual poderá apresentar-se já na próxima segunda-feira, 21.

Um dos factores que concorreram para a saída imediata foi a inexistência de um contrato de trabalho entre o jornalista e a Rádio Ecclésia há quase um ano. Durante os últimos 10 meses, JP trabalhou sem nenhum acordo e tentou, por diversas vezes, fazer uma aproximação com a actual equipa directiva da emissora dirigida pelo padre Maurício Camutu. Tanto o sacerdote quanto os seus coadjutores ter-se-ão fechado em copas, de acordo com informações avançadas pelas nossas fontes. Inconformados com a posição tomada pelo colega, que se notabilizou nos debates de sábado e nos fóruns matinais de 4ª feira ao lado do padre Luís Konjimbe, outros jornalistas da Ecclesia ainda tentaram persuadi-lo a recuar, como o fizeram em ocasiões anteriores.

Mas desta vez era tarde de mais… «Temos plena certeza que se a direcção tivesse renegociado o contrato, João Pinto teria permanecido na rádio e não iria à Tpa, como aconteceu agora. O que se passa é que, ao contrário daquilo que pessoas como o bispo Anastácio Kahango têm dito, a direcção da Ecclesia parece mais interessada em sufocar os trabalhadores obrigando-os a abandonarem os seus postos de trabalho», desabafou um radialista da casa.

Durante os mais de 10 anos em que esteve ligado à rádio, JP viu partir vários colegas seus, mas manteve-se sempre fiel ao projecto. Inicialmente, numa fase em que os destinos da Ecclesia repousavam nas mãos do padre António Jaka, actual bispo de Caxito, ele testemunhou, de uma só vez, a saída de jornalistas como Herculano Coroado, Paulo Julião, Emanuel da Mata, Amélia Aguiar, Cristiano Barros, Carla Castro, Mário Vaz, Carlos Veiga, Claudeth Rocha, Neto Júnior e outros. Já sob os auspícios de frei José Paulo (actualmente na fundação Open Society), que está desolado com a saída do antigo pupilo, outros quadros, entre os quais Fátima Neto, António de Sousa, Zacarias Bungo e Victor Hugo Mendes, também «tiraram o pé», mas, como sempre, JP preferiu ver a caravana passar.

Pouco depois alguns dos principais integrantes da equipa que dirigia na rádio, como Alexandre Kose, Benedito Joaquim, Gabriel Veloso e Francisco Miguel, também decidiram saltar do barco. Até mesmo o jornalista Gustavo Silva, um antigo quadro desta emissora «repescado» da Tpa para devolver a mística à «Rádio de Confiança», bateu igualmente com à porta.

Gustavo não foi sozinho e tratou de levar consigo alguns dos seus colaboradores directos, entre os quais se encontram os dois principais repórteres do programa matinal «Bom Dia Angola», da Tpa: Alexandre Kose e Benedito Joaquim. O rombo aberto pela saída de JP da Ecclesia leva, mais uma vez, a que as pessoas se interroguem sobre o que estará na origem dessa sangria. Devido ao facto de quase todos os antigos funcionários da emissora terem ingressado em órgãos estatais, nomeadamente a Rádio Nacional de Angola e a Televisão Pública, a tendência inicial foi para corroborar a tese segundo a qual se trataria de uma mega-operação urdida pelo Mpla para enfraquecer, se não mesmo silenciar, a emissora católica.

Porém, o tempo tem-se encarregado de demonstrar que o mau ambiente de trabalho e a péssima remuneração têm sido responsáveis pela «fuga de cérebros» que se assiste na rua comandante Bula. Há quem acrescente que as sucessivas demonstrações de falta de solidariedade dos responsáveis da Igreja Católica para com os profissionais da emissora em momentos de diferendo com o poder, também tenham sido determinantes para a decisão tomada por muitos radialistas da casa, entre os quais o próprio João Pinto. Nos últimos meses, tanto D. Anastácio Kahango, bispo auxiliar de Luanda, como D. Zacarias Kamuenho, bispo do Lubango, tiveram posições que causaram um mal-estar generalizado na redacção da emissora católica e nos seus colaboradores nas províncias.
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No banco sol respeita-se a ordem de chegada

Benguela, 22/04/08: Uma solução tecnológica adoptada por aquela agência bancária privada de direito angolano veio, em boa medida, acabar com as inevitáveis “cunhas”, que muito frequente contribuem para o já generalizado mau atendimento público em Angola.

O cliente chega, e no dispositivo electrónico preme o botão correspondente, sendo a opção "A" para o serviço de caixa, ou "B" para atendimento geral, e uma senha é automaticamente impressa. Os detalhes são: a data, o número de ordem do interessado, o número de pessoas na fila. Pronto, agora é só esperar pelo anúncio emitido por altifalantes indicando em que caixa ou balcão se dirigir.

Embora não saibamos quanto terá gasto a agência com a aquisição do referido aparelho, o que podemos com certeza garantir é que os efeitos positivos são automáticos, na medida em que o cliente entra e sai com a noção de que o seu tempo é respeitado.
Gociante Patissa
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sábado, 19 de abril de 2008

Desabafos poéticos (em dois versos)

Do poema "Minha Desgraça"

Autor: Álvares de Azevedo

Minha desgraça não é ser poeta
Nem na terra de amor não ter um eco,
É, meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como se trata um boneco…”

.................

Do poema "Mulher ao Espelho"
Autora: Cecília Meireles


Já fui loura, já fui morena,
Já fui Margarida e Beatriz,
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
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terça-feira, 8 de abril de 2008

(Opinião): Declaro aberta a campanha eleitoral

Quando o Tribunal Supremo – ou quem quer que seja a instituição competente – der por aberta a campanha eleitoral, até o mais distraído dos cidadãos saberá que “antes de estar, já estava”.

98 partidos políticos em situação regular e 29 outros ilegalizados pelo Tribunal Supremo, é o quadro um tanto preocupante com o qual Angola caminha para as segundas eleições, a decorrerem no principio de Setembro deste ano (não avançaremos datas, até serem de facto convocadas). Supondo que se ponha a disposição de cada partido político qualquer coisa como USD 75 mil, teremos um orçamento do erário público de 7 milhões 350 mil Dólares norte americanos.

Pelo país, a corrida a anunciar as eleições sente-se no pulsar do sangue, na “intoxicação” discursiva, no arco-íris ciumento das bandeiras partidárias, enfim, num generalizado semáforo já em cor de laranja, sugerindo prudência. De facto, prudência acaba por ser a lamparina obrigatória enquanto durar a “treva” chamada contexto pré-eleitoralista.

Na verdade, sabe-se sempre a data da realização do pleito eleitoral, mas muito difícil – para não dizer impossível – é determinar a data exacta do início da campanha eleitoral; tal é a complexidade do exercício da política, tal é a matreirice do ser político e o jogo de cintura para vencer o adversário (onde o segredo está no bem esquivar os impedimentos da lei, no saber jogar com os segredos e com os erros do adversário). E o público é que “paga”.

No livro biográfico de Nelson Mandela, “Long way to freedom”, confessa o narrador a dada altura que a campanha para as primeiras eleições na África do Sul libertada do Apartheid havia começado muito antes da autorização formal, ou seja, o seu maior relevo deu-se com a mediatização preparada e bem executada do momento da saída da prisão do líder, no caso, Nelson Mandela.

Pronto! Declaro aberta a campanha eleitoral, e deixamos de fingir que as incursões pelo país são apenas devidas à sensibilidade dos nossos irmãos pendurados nos altares da política. Declaro aberta a campanha pela convicção de que é também meu dever de cidadão contribuir para que, no final, a vida do meu povo (se tiver que mudar) mude numa perspectiva de melhoria.

Para ser sincero, assim como não acredito na fé cristã de muitos que me querem convencer, também não me inspira confiança político algum. Propositadamente decidi que só me registaria quando faltassem dois dias para o fim do registo eleitoral. E assim foi. Com todo o respeito que tenho por eles, enquanto adultos com responsabilidade e idade superiores, nenhum político é mais importante do que povo (o conceito de povo inclui o mais esquecido dos cidadãos!).

Por isso, a minha mensagem é dirigida ao povo que é, convenhamos, aquele que mais esperança oferece em termos de integridade e carácter. Embora não tenha votado nas eleições de 1992, participei com toda a ingenuidade de adolescente com convicções, pintei calças e camisolas, enrouqueci a voz em comícios e passeatas, distribui propaganda. E uma lição aprendi: o político que incita violência confia no helicóptero e na guarda-pessoal; o simpatizante que se entrega à intolerância política, quebra a cara e as relações com os demais.

Mesmo que o nosso candidato venha ganhar, não será tão cedo que este, o candidato (não importa sem homem, se mulher), virá tão perto das massas. É pura ilusão! “Luanda fica sempre longe!!!” Vamos, por isso, como cidadãos participar das eleições e que vença aquele que convencer, mas que seja Angola a melhor opção. Nenhum político merece estragar o nosso espírito africano de tratar o próximo como irmão. E não será difícil penalizar aquele político cuja língua for veneno. Os políticos fizeram a guerra, mas cabe ao povo, consciente e sóbrio, fazer a paz através do seu comportamento, através das suas escolhas.

Gociante Patissa, 8 de Abril de 2008
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(Conto): Há coisas que uma carta não consegue dizer (*)

Através da Cruz Vermelha, Amadeu recebeu a carta do filho desaparecido há quinze anos, menino de catorze anos na altura. Estava na tropa e um dia voltaria. Era somente desta forma que os limites da esperança os permitiram pensar durante a ausência.

“Queridos pais, espero que estejam bem. Finalmente a guerra acabou e estou contente porque não dava mais (…) quero voltar à casa já, mas preciso da vossa aceitação. Tenho um amigo diminuído físico dos pés e braços, que muito me ajudou e não tem onde ficar. Só volto se me permitirem trazê-lo”.

A emoção é forte ao abrir a carta. Tanta era a ânsia de ver a família unida! Mas a ideia do amigo diminuído físico era um desafio difícil. E na carta:
“Querido filho, não imaginas como nos alegra ouvir de ti. Venha tão logo quanto possas. Mas em relação ao seu amigo sem braços, nem pernas, achamos que o melhor seria encontrar uma instituição apropriada, uma vez que seria um fardo difícil para nós”.
Era para os pais uma injustiça do filho ao estipular tão elevado preço. Até que um dia o telemóvel vibra:
– Alô, Senhor Amadeu?
– Sim. Quem fala?
– Azevedo, um dos amigos de Wilson. Comunicamos que o vosso filho faleceu… morte súbita, esta manhã.
– Morte súbita, como? Possas, pá! Você se enganou no número, não era para mim a chamada! O Wilson não vai morrer tão cedo. NÃO PODE!
– Não é fácil nem agrada ser eu a lhe transmitir essa notícia. Mas o outro nos deixou mesmo. É como já disse…
– Mas morreu como? Porque até aqui não disseste nada, pá!
– A história completa o paizinho vai saber quando vier cá...

Surge uma pausa. As forças estão distante para a pergunta que se impõe. Um suspiro devolve o fôlego ao receptor da mensagem, que também não conhece quem a transmite. A menos de um metro está a esposa, que acompanha o anúncio da má nova com o telefone na função mão-livre. Também a lacrimejar, mas de certa forma mais forte do que o marido. Apanhada sentada pôs-se de pé, enquanto o marido procurou de imediato sentar-se.

– Mas “cá” aonde, se é que posso saber? Porque espero há oito meses para saber onde está meu próprio filho – desabafa perdido na velocidade dos acontecimentos.
– Bem, se ele nunca disse, é uma questão que a consciência me obriga respeitar. Pela consideração que tenho pela boa pessoa que o seu filho foi e também porque há coisas que uma carta não consegue dizer… Estamos no Namibe.
– O que quer dizer com isso?
– Nada de novo. Quando nos encontrarmos vamos conversar mais e as coisas estarão mais claras.


Que quebra-cabeças tão doloroso! O filho evitou sempre conversas susceptíveis de dar pistas do possível nome do bairro, cidade, ou coisa do género. “Quando for o momento, vos direi. Isso também não tem importância porque não ficarei aqui por muito tempo”, argumentava com insistência sem convencer os pais. Este pequeno detalhe estava condicionado à aceitação do amigo diminuído físico pelos pais, negociação de mais de oito meses.

Era como se as horas girassem ao contrário. Uma sensação estranha tomava conta dos seus sentidos. Não era para menos! O filho morre mesmo antes do tão esperado reencontro, ao fim de quinze anos sem paradeiro. O quarto dele continuava ocupado pelas suas roupas, brinquedos, fotografias e a pela presença espiritual. Era como se o tempo tivesse parado, muito mais porque três abortos impediram a mãe de voltar a gerar outro filho.

Passada uma hora estava o casal no seu Jeep em direcção ao Namibe. Já avisados, os familiares mais próximos aguardavam com ansiedade a realização do óbito em Benguela, por aí dentro de uma semana. A mulher pergunta ao marido se vai conseguir fazer isso. Ele diz que sim, nem que tenha que ser a última vez ao volante.

As estradas em reconstrução facilitam a viagem, de uma província à outra. Seria de esgotar a conversa, mas entre marido e mulher até o mais banal dos temas faz sentido.
A perda fez da senhora um pouquinho mais velha, humor a baixo de zero. Olha-a da testa a baixo até à região dos seios e imagina os tempos de mocidade em que eram a mais bela das paisagens, o que nem mesmo o nascimento de Wilson desfez. Em reacção acontece a erecção, tal como se dava há anos. “Que sensação mais estranha agora!”, pensa em segredo enquanto encolhe as pernas como medida para desencorajar o membro viril, num misto de culpa e de alegria – embora não seja o momento apropriado, é sempre agradável o despertar da tensão sexual quando o casamento leva já décadas de vida e monotonia.
– O que foi? – pergunta ela.
– Nada de especial – minimiza o marido –. Por que pergunta?
– Senti-te algo distante.
– Não liga. Deve ser dessa desgraça sobre os nossos ombros.


Uma vez superada a Serra da Leba, está-se às portas do Namibe. Lá foram recebidos por um grupo de jovens. Foi então que descobriram que Wilson suicidou-se ao notar que seria um fardo pesado para os pais. Tinha perdido as pernas e os braços na guerra. Vivia do subsídio que recebia do exército e sobretudo da camaradagem dos ex-companheiros de guerra. Esperava contar aos pais a verdadeira história, que, na sua forma de entender, não se conseguiria explicar numa carta.

Moral da estória: as cartas nunca deveriam substituir o contacto pessoal na resolução dos problemas.


Por: Gociante Patissa (Inspirado num enigma que circulou na Internet)
(*) Publicado na Edição de Setembro/07 do Boletim informativo educativo e cultural "A voz do Olho"
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