sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Por quantas vezes mais voltarei a este lugar??

Uma voz, a habitual para ser sincero, lançava ao vento palavras de consolo, equilibrando-se entre o repouso agora e um espaço melhor num futuro distantíssimo, enigmático.
“Não sei quantas vezes mais terei ainda de voltar aqui, mas a chatice de cá estar é sempre a mesma”, desabafei com um amigo. Já fora, no fim de tudo, uma senhora em trajo preto desabafava impotente com uma suposta amiga (ambas para mim eram desconhecidas, sendo a viatura e a viagem a única coisa em comum entre nós): “uma gaja nunca vem aqui para relaxar… é sempre com problemas. Possas!”
Voltará a sorrir tão cedo a pobre mulher? Talvez (espero que sim!), mas o rosto transparecia abalo, com um suspiro sentido, enquanto tentava sentar-se no pára-choques traseiro empoeirado da viatura, que não sabia a quem pertencia nem o sujeito que a conduziria. Nestes momentos, qualquer carro dá, não há lugar para formalidades. No fundo todo o mundo vai ao mesmo sítio e volta já, já, à base – excepto, claro, a pessoa do dia.
E os primeiros instantes no destino então são os mais ingratos, sobretudo quando no quintal – cujo branco não é sinónimo de uma paz sincera, racional, mas apenas de conformismo, face a uma derrota sem recurso impeditivo – a leitura daquele texto de costume caminha para as últimas linhas.
Como sempre, já sei o que vem a seguir. Mas me retiro, e é agora, para não olhar de frente, pelo menos desta vez, o passo mais concreto de toda a cerimónia (aquele momento que põe de parte toda a natureza de aparências que normalmente norteiam o socialmente recomendável em termos de apresentação individual e de discursos em relação ao personagem único; o momento pragmático do “terra p’ra terra”). Dou dois passos à retaguarda devagarinho para não dar nas vistas (péssimo momento para um eventual show-off!). Uma obra de arte castanha, que atende pelo nome de caixa, capitaliza as atenções, disputando nalguns casos com os rostos húmidos daqueles directamente mais atingidos (oh, e há sempre!).
O filme é repetido e o impacto também. Enquanto deixo o círculo em busca de forças, sinto as pernas trémulas, a cabeça doendo… Estão muito frescas as imagens de uma conversa de “amizade em trabalho” que travamos na única pensão do Cubal, há um mês. Tudo agora passa para a classe de um passado sem interacção, juntamente com os seis anos da relação de colegas de “profissão”. É mais uma repetição da triste constante: a vida um dia nos junta e, logo, logo, nos separa…!
O homem da bata branca, de livro de capa azul na mão, com os olhos por detrás dos óculos, continuava a apregoar o Senhor e o descanso eterno, enquanto amigos e familiares se rendiam em segurar as poucas pás disponíveis. E cada pausa do seu discurso corajoso era preenchida por um barulho agudo, num compasso que se tornou perfeito face à peculiar frequência ao longo dos anos. O buraco tinha de ser tapado, o homem ficaria mesmo!
A poucos passos, um atraente vaso na cabeceira de uma campa de humilde aparência salta à vista. É natural ou artificial? Agacho-me, arranco uma folhinha e o verde húmido entre o meu polegar e indicador, ao esmagá-la, diz tudo. De um verde nutrido e uma flor amarela sorridente, foi trazida para cá no meio de lágrimas e choros de uma família que depositava para sempre mais um ente querido, como essa, hoje, agora. Não há dúvidas. Ela, a flor, sem me dizer há quanto tempo não recebia irrigação, só mostrou que tem conseguido sobreviver, ao lado de um vasto universo de flores artificiais em vasos com água.
Por mais voltas que dermos vamos lá sempre ter… no cemitério. Como é chato, principalmente quando cada visita representa sempre a partida de alguém conhecido e/ou chegado, para nunca mais se voltar a ter novidades?! Como doem as habituais irrespondíveis perguntas lançadas aos choros por órfãos, viúvos/as e familiares em geral? Como é ingrato sabermos que o fim da vida dessa pessoa é o início de um problema para muitos, o de dar seguimento ao seu projecto de vida? O hoje lá se vai, mas quem sabe o amanhã? Ou melhor, é coisa de a pessoa se perguntar: por quantas vezes mais terei de voltar ao cemitério?
Por: Gociante Patissa, em memória de Gabriel Agostinho, o “Gaby” da Okutiuka, Lobito, 12/08/2006
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