domingo, 18 de março de 2018

Obituário | Chama-se Salomé aquela mulher que tingiu os noticiários de sangue

Aquela mulher que amanheceu hoje tingindo de sangue as primeiras linhas do noticiário é a Salomé. Foi um choque enorme a notícia do seu assassinato, perpetrado pelo inimigo mais próximo e perigoso (porque difícil de prever), aquele a quem um dia se juntou no papel de marido, no bairro do Luongo, na comuna da Catumbela. O monstro terá usado uma catana para silenciar de vez a sua parceira, na casa dos 40 anos de idade, mãe de quatro filhos, sabe-se lá por que impulso. A Salomé é o mais recente rosto da estatística da barbárie que se esconde no silêncio de mulher adulta, a violência doméstica, com a dona de casa rebaixando-se ao extremo para manter as aparências e assim não destoar a expectativa social, por ser aquela a quem recairiam imediatamente as culpas do lar que não der certo. Conheço a família dela, com a qual aliás chegamos a ter algum vínculo de afinidade por conta da vizinhança e da amizade entre um tio nosso (Henrique Avindo Manuel, já falecido) e um tio dela (Isaías Kanguinha), na parte suburbana do bairro da Santa Cruz (Kambanjo), no município do Lobito. Dona de uma beleza invejável e de fácil socialização, Salomé é da geração nascida antes de 1975 e em certa medida marcou a nossa infância e adolescência como sendo uma das beldades mais cobiçadas pelos kotas do bairro, elegância presente até no andar e que sobrevivia à erosão do tempo. E há um quê de ironia no simbolismo das coisas. Criada no Bairro Santa Cruz (não sei se ali nascida ou se no Bongo, Huambo) e depois de alguma experiência na capital do país onde tentou a subsistência, escolheria o bairro do Lwongo (dorso ou coluna vertebral, em Umbundu, um bairro entretanto mais lembrado por acolher o maior cemitério de Lobito e Catumbela). Vão nos próximos dias a enterrar os seus restos mortais marcados por golpes de arma branca. O que sobra é uma indignação fortíssima e aquelas perguntas da família em busca de um porquê da tragédia, porquês entretanto condenados à condição de questões de retórica, não havendo nada que justifique uma morte tão cobarde. Um adeus até sempre, mana Salomé, do teu menino do bairro ali perto da kapira, aquele do tio comissário, o Dany.

http://angodebates.blogspot.com | Gociante Patissa | 18.03. 2018
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