domingo, 11 de março de 2018

Crónica | Eu é que não quis ser rico

Engana-se quem pensar que a aprendizagem de um ofício se faz o tempo todo por meio do manuseio das ferramentas e materiais próprios do ramo. 

Logo no primeiro mês, eu já era o moço de comprar aguardente artesanal e peixe sardinha frito, mais a respectiva salada. Tinha 14 anos e precisava desesperadamente da ninharia prometida para custear a escola na sétima classe. Também já fui de levar fuba de milho, hortaliças e peixe seco à casa do mestre à cabeça e lá posto não escapar aos maus humores escravocratas da patroa. Nem só já responder ao meu boa-tarde ou então ajudar a descarregar o fardo. Enfim...

Consoante me fosse aumentando o peso do corpo, recebia a promoção de arrastar o mestre para dentro da Foto, não fosse o bairro todo vê-lo em estado de coma, à mercê das moscas, vómito e com o rio de amoníaco correndo a caminho do joelho. A esposa, num dos assomos de dominação, quase me puxava as orelhas perante a determinação de não dormir na empresa, de atalaia, numa das noites de apagão etílico. E se o meu marido alguém lhe levar à noite? Queres-me ver viúva, né? Fui suportando, afinal queria ser fotógrafo.

Ah, também fazia recados para as amantes do mestre, que muito adoravam a câmara escura, sabe-se lá para quê, já que não faziam a mínima ideia da função do ampliador, revelador, do fixador ou da cor encarnada por mera questão técnica e longe de vocação romântica alguma, não é? Ah, e as petas eram comigo na falta de material, altura em que disparávamos num vazio auxiliado pelo flash para afastar a impressão de encenação. No dia seguinte, olha que pena!, o rolo das suas fotos queimou, vai ter de repetir. Impensável era dispensar o dinheiro do cliente... só porque não houvesse rolos/filmes no mercado.

Certa vez, já atolado em dívidas e ao mesmo tempo avesso a cobranças boçais à porta do estabelecimento, o mestre, de um perfil fino, mandara dizer que não estava presente. Foi exactamente o que fiz com todos os que o procurassem, mas a disciplina quase me custou o emprego na semana seguinte. Um dos clientes a quem omiti a presença do chefe, que entretanto não quis deixar recado, tinha afinal um evento urgente para reportagem fotográfica, e o bom do dinheiro que acabou massajando as mãos da concorrência.

Estas linhas surgem a propósito de uma outra faceta da experiência, a da socialização como figurante em ambiências do mestre no bairro da Santa Cruz, cidade do Lobito, onde ficava a sede da Foto Kodak. As conversas de copo eram deliciosas, algumas premonitórias mesmo.

Entre 1993 e 1995, escombros seria a palavra mais certa para descrever o quadro socioeconómico do país e o psicossocial de cada residente. O conflito pós-eleitoral introduzira um saque aos armazéns e lojas bem ao género faroeste. A ONU era o verdadeiro governo, tal era a crise humanitária. É neste quadro que certo conviva segura pelo ombro o mestre e arranca com profunda melancolia um trecho laminar: "Meu camarada, eu é que não quis ser rico..." Abandonei a barraca para me rir às escondidas de uma tal anedota, vinda de um não branco. Como assim, "eu é que não quis ser rico?!"

Vim a indagar sobre o sujeito que nos impingia que o fim pobre que vivia era opção. Na minha cabeça de sonhador, não me via rejeitar heranças. Soube que o senhor fora por muito tempo Diretor Geral de uma relevante UEE, as então Unidades Económicas Estatais, interligando o sector industrial e o Porto do Lobito. Será que devo desculpas ao ex-gestor?

Gociante Patissa, Benguela, 11 Março 2018 | http://angodebates.blogspot.com/
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2 Deixe o seu comentário:

Cláudia Cassoma disse...

Leitura cativante! Desde o começo, procurei por algo que me ajudasse a fazer sentido do título. Ainda não eram gargalhadas, mas quando cheguei até às tuas também "abandonei a barraca para me rir às escondidas". Mas, sempre a pensar, como?!
O final contou-me muitas coisas e falou-me muito sobre o país. Penso até que me obrigou a reflectir sobre a pressa com que generalizo a tirania. "Será que devo desculpas [à alguns deles]?"
Leitura arrepiante!

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Grato pela visita, sempre mui estimada Cláudia. Há que rir kkk
De facto o país vem conhecendo um rumo preocupante no declínio da ética, pelo que, não tanto ontem, mas hoje até já se torna anedótico que alguém que tenha desempenhado cargo de gestor público tenha acabado pobre. Beijinhos

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