quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Crónica | A Caixa Postal 208 já não tem vida

Foto de arquivo
A primeira paragem no cumprimento de um itinerário improvisado foi na Estação dos Correios. Uma nuvem de tristeza pintou-se no ar. A caixa postal 208 já não tem vida. A IESA (Igreja Evangélica Sinodal de Angola), do Alto Niva, na Catumbela, pôs fim à sua titularidade. É como se parte da minha história morresse. É compreensível a decisão do ponto de vista de custo/utilidade. Os tempos são outros. Hoje impera a rapidez das TICs. Encomendas da cooperação Suíça poderão, por outro lado, ter deixado de existir.

A balconista, como se parasse no hiato entre 1994 e a data presente, recebe-me com a mesma simpatia e carinho. O aro da porta faz sombra, cobre-lhe metade do rosto pela zona das suíças, mas o tempo, este irrefutável critério da erosão biológica, ancorado em meia centena de velas sopradas, espreita pelas grisalhas madeixas fora do lenço. É uma relação de cumplicidade gravada há 23 anos. Estás homem!, exclama ela. Eras bem pequeno, ene!, prossegue. Afinal o tempo mesmo passa, e nós estamos aqui!, conclui.

Uma estação rendida ao estaticismo. Funcionária solitária, apartados às moscas. Nem desporto no rádio. Parece ter sido descoberta uma nova vocação: contar as horas até largar. Alguns rostos já não se acham no CTT. A morte conhece-lhes o paradeiro. Outros tomam conta da aposentação, caminho que se desenha para a veterana balconista.

Meados de 1994. Influenciado por Betinho Muandoji, creio eu, embarcaria um estudante da 6.ª classe, 15 anos, sonhador q.b., no saudável vício de corresponder com um mundo algo fantasioso, Portugal na primeira linha. Na era em que as redes sociais operavam na arte da carta convencional e a uma velocidade de dois ou mais meses entre a expedição e a resposta, podemos dizer que os selos constituíam o que hoje chamamos de despesa com o saldo. Selos, cola branca e envelopes feitos em casa de resmas de papel A4.

O mais caricato. Juntando a fome e a vontade de comer, chegaria a atrair um jovem patrocinador, o Antunes Manjolo. Este custeava as despesas e eu redigia as cartas para o mesmo receptor a duas mãos, literalmente, disfarçando assim a paternidade da caligrafia, na ausência de uma máquina de escrever. Para mim, com a mão direita. Para ele, com a mão esquerda. E cada envelope chegado punha o coração aos pulos, tal era a ansiedade. Benfica, Porto, aqueles autocolantes, posters, cartazes, ah!... e amigos singulares.

Perdeu-se a conta dos selos lambidos, dos envelopes espalhados, das caminhadas a pé desmentindo os quatro ou mais quilómetros de sol e pó entre o bairro da Santa Cruz, no Lobito, e a Catumbela. A procissão tinha de ser a uma periodicidade apertada, nunca superior a uma semana. O receio, a roçar o vexame, morava no risco de os irmãos do secretariado chegarem primeiro e recolher as correspondências, que seriam mais tarde divulgadas durante o culto no espaço dos anúncios sobre o trabalho da igreja. Estando já desvinculado do grupo infanto-juvenil Pré Educação, então quem levantaria a mão seria a minha mãe, logo ela que mal gostava de exposições. A verdade é que nunca questionou.

Passei a tarde de hoje na vila da Catumbela e aproveitei para passear pelas memórias de estudante. Nada é para sempre, nem a caixa postal 208. Ainda era só isso. Obrigado
Gociante Patissa | 20 Dezembro 2017 | www.angodebates.blogspot.com  
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