terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Crónica | Uma ligação muito bem perdida

E o senhor, o que quer beber? Água, se faz favor!, abri-me como quem andasse no deserto. Quer outro copo, certo? Sorri à perspicácia da assistente, portuguesa com muitos ainda por somar até chegar aos trinta. Também aqui dentro o ar é muito seco, acrescenta ela com aquela empatia de converter instantes em momentos memoráveis. O contacto é breve e ela segue pelo corredor, empurrando o carrinho dos víveres.

Tenho livros para ler no iPad mais o filme sobre Mandela e o desporto contra a segregação racial. Vendo a assistente de volta, peço um minuto: preciso da vossa ajuda. Tenho ligação para Luanda, e estamos a sair daqui com duas horas de atraso. Íamos a bordo da TAP para Lisboa, vindos de Frankfurt, Alemanha, aonde me desloquei entre 16 e 23 de Outubro de 2016, a convite do Goethe-Institut, para integrar o grupo de 22 países internacionais visitantes à Feira Internacional do Livro de Frankfurt.

Vou avisar o comandante, assegura ela, quando estivermos em aproximação, reportamos da sua condição. Em princípio, o vôo para Luanda terá de esperar. Voltei a agradecer pelo socorro. Isto hoje anda tudo assim. Houve uma situação no aeroporto de Lisboa, de manhã, que afectou toda a programação, referiu ela. Mas que situação seria? Isto já é a pergunta que tive de asfixiar, da incorrigível curiosidade de jornalista fracassado, não é? Mas, enfim, revesti-me da minha faceta de profissional de aviação e deduzi que a simpática rapariga não evocaria mais do que as célebres razões de ordem operacional. Só mais tarde soube que se tratou da greve de controladores e dos taxistas.

Chegados ao terminal de transferências, o inesperado. O avião para Luanda tinha já partido. Sou o quarto na fila das irregularidades. Duas moças com destino à Madeira, sem no entanto ter onde se acoitar, quando só às cinco da manhã sai o primeiro autocarro. Um brasileiro rumo à Espanha. Confusão é o oxigénio que se respira. Três agentes da GNR não escapam aos impropérios, por alegada inércia. E lá surge um João, funcionário da TAP, célere e algo refilão. A minha vez faz-se vez, e lá o funcionário preenche um VOUCHER para hospedagem e alimentação num tal de VIP Executive Lisboa. O endereço dá-se verbalmente, eu faço tudo menos reter. Qualquer taxista sabe onde é, diz ele. Vôo remarcado para o dia seguinte à mesma hora. Às 23 horas assento o traseiro no assento do táxi. O que se segue é uma gincana para esquecer.

De VIP Executive, Lisboa tem uma cadeia de hotéis que nunca mais termina. O taxista, 45 anos, ascendência cabo-verdiana, no princípio é um misto de empatia, sereno chuvisco e victória desportiva. O meu Benfica ganhou, rapaz! Um a zero, mas o que importa são os três pontos. Já batemos a umas quatro portas e nada de ser o hotel parceiro. Uma da manhã. O taxista agora é a própria fúria. Tenta abandonar-me na rua. Os dez euros que tem a receber do hotel, diz, não compensam.

Simulo não ter dinheiro, a ver se o prendo na odisseia. Quem é que me paga o combustível?! Um gajo até desliga a merda do taxímetro; se a bófia vê um valor alto, ainda julgam que ando a enganar. Ouve, meu amigo, isso fazem consigo (evitou dizer preto), porque se fosse diferente… Mantive-me calado e indiferente aos bufos do homem, recorrendo à técnica da exaustão. Nada nos unia melhor do que o silêncio e a esperança de ver terminado da melhor maneira o pesadelo à TAP. Às duas, finalmente, achávamos o maldito hotel, ali pelo palácio da justiça. Junto dez euros aos dez pagos pelo hotel, e de repente o taxista até já tem familiares em Benguela.

E na manhã seguinte contacto a advogada Alexandra Sobral, amiga de luxo que a literatura me brindou, e já tenho cicerone para um dia de turismo por Lisboa e seu potencial cultural, com a inclusão da outra alma de luxo, a arqueóloga Filomena Barata. No balanço da odisseia, é caso para dizer que foi uma ligação muito bem perdida.

Gociante Patissa. Aeroporto Internacional da Catumbela, 10 Jan 2017
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