segunda-feira, 2 de maio de 2016

[Oficina] Crónica | Será que voltarás a viuvar?

Texto de Lauriano Tchoia
Luanda, 02/05/2016
Toda a atenção dispensada, “é viúva deixem passar”, ninguém conhece nem sente a dor por ela.

Já fez parte do quadro mais belo da minha cidade só não sei que desgraça a levou. Inseria-se bem no padrão estrutural de um espaço que se apresentava entre a lua e o sol do trópico num bom dia. Cedia ao contraste do mosaico móvel da urbe e David Zé ousou embelezá-la no seu canto.

Caminhar sereno, olhar cabisbaixo e o lenço na disputa a reaver-se com o véu para o cuidar de tão exigido cumprimento do ritual, que ao ser destituído, o ditar da morte, pragas ou mal maior era quase coisa certa.


O atrevimento era tocar tão-somente no preto do traje, ainda que exposto apenas ao secar da lavagem, o corpo receberia o xidi (azar), visitas impiedosas no sonho, transpirar no entardecer frio e delírios incessantes, só tratado intervindo o xira (curandeiro) grande.

Era ela pelas ruas, nos mercados e machimbombos, preto dos pês a cabeça e luvas no mesmo tom de cor, para ajudar a honrar a memória do seu defunto. Rezas madrugadoras do terço a sua alma, no resplendor da luz perpétua, três vezes amém.

Dar a mão nem pensar, beijar nem com sobrinho! Luvas cobrindo o limiar de ângulos intuitivos, é no roçar de dedos que a matreirice apelava. Tão nova nos seus dezassete anos perdeu o marido. Furriel, tropa tuga, coitada!

A dor da solidão esbatia-se; como vai cuidar do filho que lhe decora os braços? Como vai poder pagar a renda da casinha de madeira no Marçal? Tantos “comos” que dali não passavam, ninguém dava, ajuda comprava-se com interesse.

Puro desengano, para quem pensa que o uso de roupas negras é simples assim. Secundava-se ao ritual inicial e as infusões de kijilas (terapias) e etiquetas próprias. Presente para o seguimento o rigor de uma anciã conhecedora e disponível a monitorar passos próximos do errado.

É este teu postal que não mais surge nesta cidade com a qual andaste por anos. Que maldade te fizeram? Que retiro perverso? Será por alguns desmerecimentos a castigar a alma de corpos vadios enquanto na pista terrena, ou viagras em fastfood nos impedem tal vigília à submissão e honra?
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