quinta-feira, 17 de março de 2016

| Um conto que marcou a parte teórica do meu curso de pedreiro em 1997 | A ESCOLA. A FLOR. A FLOR. A ESCOLA...

Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza. Quando terminou a aula, me chamou. — Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco. Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava a coragem entre as coisas. Afinal se decidiu. — Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade? Balancei a cabeça afirmativamente. — Da flor? É, sim, senhora. — Como é que você faz? — Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta. — Sim. Mas isso não é direito.
Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”. — Não é não, D. Cecília — O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também... Ela ficou espantada com a minha lógica. — Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro... E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio. Ela engoliu em seco. — De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá?... — Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some... — Eu não podia aceitar todos os dias... — Por quê? — Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda. Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos. — A senhora não vê a Corujinha? — Quem é a Corujinha? 48 — Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos e amarra com cordão. — Sei. A Dorotília. — É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre demais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá, com ela. Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo. — A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda.
Dindinha, minha avó, todo sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre. As lágrimas estavam descendo. — Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado. — Não é isso, Zezé. Venha cá. Pegou as minhas mãos entre as dela. — Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé. — Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa. — Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete? — Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio? — Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu essa flor foi o meu melhor aluno. Está bem? Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura. — Agora pode ir, coração de ouro...

José Mauro de Vasconcelos, in «O Meu Pé de Laranja Lima», disponível em
http://www.jfpb.jus.br/arquivos/biblioteca/e-books/meu_pe_de_laranja_lima.pdf
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