quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Crónica | Trans-futurando (por Cláudio Kimahenda)

Cláudio Kimahenda
Acordamos todos com o barulho…e é sempre assim. Depois segue-se a zanga da Mamã quer-nos todos de pé e a trabalhar, ou a estudar sei lá. Mas na cama ela não quer ver ninguém. Papá é o mais indiferente de todos, fala só com a mamã, por ser sua esposa? Meio preguiçoso e quase sempre atrasado entro para casa de banho, dou sempre um truque que estou no melhor banho enquanto borrifo as paredes.


Enquanto pratico a acção entro em estúdio depois em palco com as melhores canções compostas na mente por mim, quando estou no quarto de banho sou o melhor, o mais exímio dos artistas. (A Vida faz-nos ser Criativos diante situações e a pobreza é a melhor artífice da arte). O show termina com os gritos da minha velha. Sempre a mesma coisa papá na mesa a tomar seu mata-bicho.

E nós no quarto a discutir quem vai calçar o ténis da converse, o mano ganha sempre porque vem com teoria que enquanto não nos entendermos ele vai usar. Ousamos chama-lo Estados Unidos. Mas ele é bom, protege os seus putos, nem mesmo quando estamos errados, nunca o vi apanhar. Sempre derrotou o Golias e as Alemanha Nazis e todos, que queriam intimidar-nos. (O Nosso Mano é valente).

Hoje acordamos com o barulho do tio Mingo, não é normal, ele nunca discute com ninguém, mas há dias que até os santos se rebelam, Nanucha sua filha mais nova voltou a uma da madrugada, estava a ser constante. Foi a primeira vez que ouvi Ti Mingo ofender. As fofoqueiras do bairro Tia Luzia, Tia Micondo, Lolita, estavam lá a reportar o acontecimento como boas conselheiras, mas estavam só a recolher informações. O que me chamou a atenção é Ti Dilangue no grupo das fofoqueiras, agora entendo porque meu pai não lhe passa cartão. Minha mãe nem ousa encostar, ela diz que de manhã uma dona de casa deve cuidar do lar não bisbilhotar a vida dos outros.

Nós não somos a família perfeita. Nunca disseram-me que éramos o Eldorado ou a família de Obama. Temos as nossas manchas, neste mar, como o sol que brilha algumas vezes também está manchado. Mas os nossos problemas quem melhor gere são Papai e mamã, nunca os vi discutir, embora saiba que discutiam. Pai gostava mais do que mamã podia dar, gosta de desejar o que as outras mulheres têm. (Os homens são traidores por natureza ou é a natureza dos homens serem traidores?)

Saio sempre trinta minutos (nem tenho relógio) atrasado de casa e dou sempre a mesma desculpa “estive com dores de dente, a barriga dói e não tinha dinheiro para táxi” a professora sempre entende não me pergunta nada manda-me entrar. O que lhe importa é aluno aplicado que faz as tarefas que consegue conjugar o verbo amar, no presente do indicativo, na terceira pessoa do singular, género feminino: “ ela ama”, parecia emocionar-se quando conjugávamos este verbo. É uma mulher que gosta de poesia as vezes pede-nos para escrever-lhe cartas de amor.

Eu gostava de escrever. Pensando nos mamilos dela e naquelas pernas grossas, nas meias de vidro, na voz firme, nas mãos tenras que algumas vezes me tocavam ao passar a tarefa. Ah que doçura. Eu era douto em escrever cartas eróticas e sarcásticas. Todas as cartas devem ser assim, devem ter um pouco de viagem. Um pouco de imaginação e sensualidade.

Um dia mamã ficou chateada e proibiu-me de escrever aquelas cartas ridículas para a mestra. Hoje acordamos com o barulho. Resignado e triste não levantei da cama, mamã não se importou. Com medo de ser açoitado com palavras duras levantei-me só assim percebi que já tinha se passado muito tempo e sou hoje a figura de meu pai. Um filho que canta alto no quarto de banho, outros a reclamar sobre sei lá o que, a esposa a pôr a mesa. Encosto-me na parede vendo a Núria brincar é o rosto da mãe e faz-me viajar no tempo.
Luanda, Outubro de 2015

Cláudio Kimahenda, pseudónimo de Cláudio de Jesus Gabriel Francisco, nasceu em Kazengo, Kwanza-Norte, em 1985. É licenciado em Ciências da Comunicação pela universidade Independente de Angola, tendo como monografia “Liberdade de Impressa nos Semanários Luandenses: Semanário Angolense, Folha 8 e o Continente. Fez os restantes estudos em Luanda, onde reside desde 1994. Jornalista, actor e declamador, é desde 2004 membro do Núcleo de Estudos Literários (legado do escritor Jorge Macedo), membro co-fundador do Núcleo de Poetas Sagrada Esperança (2006-2009), igualmente membro fundador do Núcleo de Poetas Universidade Independente de Angola (2009).
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