quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

(do arquivo) Crónica| «O que vejo posso transformar em arte, só que não consigo escrever»

Quando me consegui livrar do turno, delegando tarefas ao pessoal à disposição, estava a uma hora da entrevista em directo ao programa da amiga Lena Sebastião, na Rádio Benguela.

Tinha feito trinta quilómetros ao volante entre uma cidade vizinha e a casa, o mesmo trajecto que uso para relaxar, neste gozo que é conduzir, sozinho, ouvindo o que apetece e no volume que a alma entende. Mas a fórmula estava fora de hipótese nesse exacto dia. Sim, porque, por uma causa bem justificável, embora não seja para aqui chamada, eu tinha passado a noite de sexta para sábado no assento do motorista, onde aliás me foi servido o jantar, tão-só na principal avenida do centro do Lobito.

Nesta época do ano, o litoral é quente e húmido, o que em nada alivia o stress; daí depositar esperanças na terapia do chuveiro. Posto em casa, nada de água na torneira, banho frustrado! É que, como raramente a água falha, perdi o hábito de ter alguma na reserva. Dei meia-volta em direcção ao Largo de África para tirar a poeira do carro. Apenas um “limpador” se encontrava em serviço, engajado já em outra empreitada. Não era prudente esperar pela nossa vez, dada a natureza gasosa do tempo em rádio.

Música alta vinha do jardim. O dístico falava em feira do livro, quando só se viam uma tenda com livros, uma com produtos de alfaiataria e outra com artesanato. Bem, como não há meio-buraco, uma feira é feira a partir da sua intenção, deduzi. Por puro hábito, fiz algumas fotografias. Saudei duas pessoas conhecidas ali e retirei-me.

Um quarto para 16h00. Caminhava, apressado, para o carro, tão contra que sou relativamente ao atraso de convidados quando faço rádio. Para piorar, um adolescente vinha a correr em minha direcção. Inferi logo que alguém me havia referenciado a ele. «Desculpa, quanto tempo leva para escrever um livro?», questionou-me, humilde e sonhador, como se eu tivesse autoridade alguma. Numa cuidadosa selecção de palavras, tirei a coisa da esfera da contabilidade para focar na da maturidade. O importante é o exercício permanente de ler e escrever, e não já criar a pensar no livro ou no disco.

«Para mim, que tenho dificuldade na escrita, tem que ser disco, não?» Bem, eu sou mais inclinado para o livro do que para o CD de poesia. Mas é assim: a escrita é combinar a criatividade com o domínio da ferramenta de trabalho, a língua. Tens dificuldades de escrita, como? «A trombose que me fez assim - indicava a sequela do seu lado esquerdo - prejudicou o cérebro». Anda na 6.ª classe do ensino especial e já reprovou duas vezes. Minhas emoções misturavam-se, tendo em conta a empatia e a crise de tempo.

Mas se não consegues ler nem escrever, como identificas a poesia? «Eu me inspiro em tudo, numa festa, jogo de futebol, num filme; tudo o que vejo posso transformar em arte, só que não consigo escrever. Por isso, penso no disco». Neste caso, a gravação pode ser uma técnica de evitar dispersão, para mais tarde, com ajuda de alguém, cuidar da correcção. Se decidires ficar pelo CD de poesia, tudo bem, desde que seja um trabalho com maturidade. De contrário, o mercado literário pode anular o teu esforço.

Devo ter-lhe confundido ainda mais, mas não sei falar ao contrário do que penso.

Gociante Patissa, Lobito 15 de Abril de 2013
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