sábado, 15 de novembro de 2014

fragmentos do conto VELHO BATALHA E A BICICLETA QUE NÃO SABIA CORRER


Santa Cruz ajusta-se à coreografia da máquina. Muito do que era do bairro, hoje é de alguém. Sorte a nossa que a poeira seja impossível de privatizar. Graças a ela, agora menos umbilical e com mais salitre, dá para colher o tempo, polido pelos sentires e dizeres daqui. Um destes caminhos era o do «avô» Batalha, que andava literalmente com a bicicleta na bíblica rotina «casa-trabalho-casa».

Batalha, promovido pela força dos brancos cabelos a avô (da comunidade inteira), foi, até finais da década de noventa do século vinte, o segundo bakongo mais famoso (há quem o ache cokwe), somente suplantado pelo professor Carlos. Este último deleitava a criançada com a sua pronúncia algo franco-abrasileirada (ass bananass… ass crriancasss). Já volto a falar do velho Batalha e sua misteriosa bicicleta, mas desconfio que você se estará a indagar se não há protagonismo feminino na história do meu bairro.


Abro, então, parêntesis para partilhar dois casos (talvez os mais representativos). Quando conhecemos a «tia» Isa, já ela andava metida na yula. Explico: toneladas de produtos alimentares do exército eram desviadas pela madrugada e comercializadas em residências com quintais insuspeitos, estrategicamente seleccionados dentro de um circuito. Calhava de vez em quando um ou outro flagrante, logo cadeia para o dono da casa, nunca tendo ocorrido com ela nem com o marido, de longe menos famoso. Conta-se que certo garoto foi fazer traquinices no território da Sra. Isa, que atirou:
– Você foi educado no sovaco da tua mãe!

O insulto rapidamente chegou aos ouvidos da mãe do ofendido, que não tardou em ir pessoalmente devolvê-lo, trazendo cá para fora uma parte nebulosa do passado da endinheirada:
– Mana Isa, quem és tu para me insultares?! Nós te vimos chegar, andavas aí a esmolar guelras de peixe… Ou já esqueceste o kalulú de sardinha? – tergiversava, sarcástica e triunfal, ao pronunciar a palavra sardinha, conotada com miséria, por causa do seu baixo valor comercial.

Outra mulher, entre as grandes referências lá na banda, é a tia Esperança. Todas as pessoas podiam ter cães, que ninguém se incomodava com isso. E esses cães podiam mesmo ser agressivos, ninguém ligava, desde que não fossem dela.

Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 89). GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014
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