segunda-feira, 23 de junho de 2014

Não deixe de ler na 59ª edição do Jornal Cultura, de 23/06/14, o ensaio Oratura: «ULONGA», A SAUDAÇÃO ENQUANTO INSTITUIÇÃO NA SOCIOLINGUÍSTICA UMBUNDU


Da casa de um primo seu fazendeiro no Dombe-Grande, o meu pai voltara com arranhões e o bolso da camisa rasgado. A saudade fora tão grande que, à chegada, partiu para um efusivo abraço, gesto que o cão de guarda tomou por agressão ao seu amo, acostumado à regra de se sentar primeiro e saudar depois. Assim é com os Va Cisanji.
Num universo marcado pela exiguidade bibliográfica na recolha da tradição oral, os rígidos preceitos científicos não são propriamente a nossa tenção. Não abdicamos é de contribuir com vivências, ainda que o façamos com a regularidade de um vaga-lume.

Tornando à cena do visitante agredido. Passa-se que tanto este como o anfitrião são de uma localidade culturalmente fronteiriça entre os municípios de Balombo e Bocoio, encaixada administrativamente no último. Dista cerca de 170 Km a nordeste da capital da província de Benguela, território com predominância da etnia Ovimbundu e que se comunica na língua Umbundu, representando 1/3 da população estatísticas avulsas e abrange as províncias do Kwanza-Sul, Benguela e Namibe (costa), Bié, Huambo e Huila (planalto centro e sul).
Segundo Fernandes & Ntondo (2002), referidos em Kavaya[1] (2006: 54), formam o grupo os va Viye, Mbalundu, Sele, Sumbi, Mbwei, Vatchisandji, Lumbu, Vandombe, Vahanya, Vanganda, Vatchiyaka, Wambu, Sambu, Kakonda, Tchicuma, o maior etnolinguístico angolano (acima de 4.500.000 pessoas). Quanto à etimologia, Arjago[2] (2002: 23) sugere que foram apelidados, “pelos povos encontrados, de vakwambundu, o que significa gente vinda das zonas de nevoeiro, tratando-se do litoral”.
Nestes subgrupos, cada encontro, por simples que seja, representa provavelmente uma oportunidade de inventariar a vida, sem preocupações relativas à economia do tempo. «Okwimbwisa ulonga», fazer a saudação, é um longo relato da situação familiar e introduzir o motivo do encontro, desde o último contacto, cobrindo depois o social, o económico e o político. A linguagem é coloquial e inevitavelmente proverbial. Como veremos adiante, entre os Va Cisanji, a «ulonga» é ainda mais minuciosa. Podemos concluir esta fase generalista com a certeza de que é ao bem-estar que se aponta.
Do Bocoio, a minúcia da «ulonga» é norma nas demais quatro comunas: Monte-Belo, originalmente Utwe Wombwa (cabeça de cão), Chila (de Ocila, palco, pista), Cubal-do-Lumbo (de Kuvale Kwelumbu, Cubal Mágico) e Passe (Epasi). O chefe do lar é o interlocutor exclusivo. Nos meios mais conservadores, acomoda-se o hóspede sem diálogo quase nenhum, enquanto alguém vai buscar o interlocutor. Na impossibilidade, é substituído pela esposa e, na ausência desta, pelo descendente mais-velho. É sempre o mais-novo (inferior hierárquico por idade, grau de parentesco, cargo) quem começa a contar o estado de saúde, sendo facultativa a pergunta. Se o mais-velho começa a explicar, é sinal para o inferior distraído o interromper.
Eis algumas passagens de diversas «ulonga». (a) Dialéctica: “Etu vo, mumosi haimo. Tulinga tuti vamwe vatokota, vamwe vapola. Apa mbi omãlã omo vakulila, etu twakulu omo tukukila” (Connosco é igual. Uns quentes/doentes, outros frios/com saúde. Se calhar é o jeito de nós, os mais velhos, envelhecermos e os mais novos crescerem); (b) Fome: “Twalale, omo mwenle apa omo… Etaili, okulikwata komenlã, oco okusuyako” (A noite passou-se, enfim… Hoje, levar a mão à boca, só se for para coçá-la); (c) Insegurança: “Wangombe, apamba lilu” (ao jeito do boi, os chifres em riste); (d) Aflição: “Wambwa, kwatwim kuliwa” (ao jeito do cão, as orelhas sendo roídas).
Resumindo, «Okwimbwisa ulonga», a saudação a preceito, é uma instituição entre os Ovimbundu, constituindo na tribo Ocisanji uma afronta ser questionado pelo mais-novo sobre o estado de saúde, e como tal choque de cultura na interacção até com povos vizinhos.
Gociante Patissa, Benguela, 11 de Junho de 2014




[1] KAVAYA, M. 2006. EDUCAÇÃO, CULTURA E CULTURA DO ‘AMÉM’: Diálogos do Ondjango com Freire em Ganda,/ Benguela, ANGOLA. Rio Sul, Brasil: Pelotas.
[2] ARJAGO. 2002. OS SOBAS: Apontamentos Étno-linguísticos Sobre os Ovimbundu de Benguela. Edição do autor.
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