terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Crónica: O FAMÍLIA E O CONTERRA

Finalmente, aqueles dois profissionais, conhecidos pelo antagonismo em literalmente tudo, deixavam de discordar em alguma coisa: andavam ansiosos, muito, direi. A viagem ia ser longa, não em termos de chão necessariamente.

Família entende um pouco de francês, o Conterra de inglês. Complementam-se no novo e excitante emprego, desistentes do sombrio posto de professores mal reconvertidos, isto é, com salário abaixo do previsto para o seu escalão. Integram o denominado “Staff do Don Acidente”, ku-durista que transborda prestígio, tanto que – se dependesse do culto à irreverência – seria o embaixador da cultura angolana.

Don Acidente é já de uma vasta experiência em tournées, ao contrário do Staff, particularmente o Família e o Conterra, que tinham nessa ida ao Natal Colorido da Bahia a sua primeira viagem de avião. Logo, iam recebendo do patrão pontuais lições de etiqueta no showbiz, que tinha como fundo a afirmação da grandeza angolana. “Vocês, lá, num’valapena esse respeito de boelo, ya? Os brazucas não podem esquecer que o Samba veio do Semba”, vivia repetindo o patrão. “Têm que mostrar peso, senão nos metem estatuto abáuti. Quê que vai dar? Esses wí na banda vão-nos bifar”. E como abominavam voltar ao emprego antigo, o Conterra e o Família acataram.

No aeroporto 4 de Fevereiro, os cartões de embarque. “Xê, Família, nós, licenciados, vamos na económica; ele e os bailarinos vão na executiva?” A réplica foi automática. “Isso não conta, Conterra. São ku-duristas, gozam de imunidades.” E o Conterra disse: “Claro. Nós somos Staff. Quando eras prof., a tua licenciatura te deu alguma coisa?”

Na madrugada de Natal, desembarcavam em Salvador, depois de uma escala no Rio de Janeiro, onde passaram três horas, muito bem aproveitadas para a demonstração do peso. Don Acidente conseguiu pôr os brasileiros que o contrataram de patas para o ar, ao exigir churrasco de galinha com pai e mãe. “Me fala só, Família, era mesmo necessário aquilo?” Como sempre, o Família retrucou: “Você, lá em Angola, gosta de frango?” E o Conterra: “Gostar, não gosto, né?, mas não vomito". E de novo o Família: “Meu mano, você não liga só; esses madiês gozam de imunidades, são ku-duristas.”

Atendida a exigência de lhe cuidarem do cansaço no Hotel, a garota de programa (nome requintado para prostituta) exigiu duzentos Reais, para a reacção intempestiva de Don Acidente. “Estás a brincar ou quê? Em Luanda, um gajo paga saldo do telefone, jantar, bebedeira para os sogros, roupa de boutique, cabelo brasileiro, e você só pede cem USD? Toma lá mil dólares, pá.” E lá a rapariga arrecadou dez vezes mais.

Como prevista, no palco montado na orla, a noite foi escaldante. No êxtase do palyback, Don Acidente baixou as calças. “Aquilo não é atentado ao pudor?”, intrigou-se o Conterra, o que o Família abateu: “Qual pudor, ó meu? Mete na cabeça que são ku-duristas, gozam de imunidades!” Mas o Conterra insistiu: “Ouviste aquele absurdo do patrão: eu sou gay, mas não homossexual?” Família simplesmente não respondeu.

No dia de regresso, foi o próprio Conterra quem surpreendeu o grupo ao exigir, o mais desordeiro que pôde, à mesa do restaurante um boi no espeto.

Gociante Patissa, Benguela 24 de Dezembro de 2013 (PS: pura ficção)
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