sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Crónica do nosso arquivo: Um encontro casual com o velho Luwawa ao almoço

Foto: Webshots
No Lobito, contam-se aos dedos os restaurantes que sobreviveram à segunda república. O calar das armas e a transição para a abertura do mercado abalaram economias e hábitos de consumo. De sorte que, quando a paz não precisar da guerra para se autodefinir, os humanos ter-se-ão transcendido a si próprios, digo eu.

As cidades são árvores que mantêm a essência enterrada, enquanto galhos, folhas e frutos vão e vêm. O centro do Lobito resume-se em duas ruas, a de entrada e a de saída, entre o bairro da Caponte e a na Zona Comercial. Só depois da Colina da Saudades se cruzam, para o Compão, a sul, à procura do bom pescado da Kabaia, ou para a ponta da Restinga, a norte, onde a cidade se liberta na língua da praia, em geral para tirar proveito da escuridão que o lugar regala aos casais.

O Gunga-Bar fica na rua de saída, resistindo a quaisquer infortúnios, sendo deles o mais pesaroso a morte do proprietário por acidente rodoviário, há coisa de três anos. Guardo na memória a cena da moça que tiramos do sono, às duas da manhã, em finais da década de noventa, para nos servir bebidas, numa breve fuga aos preços da discoteca ali perto. O restaurante prestava-se ao desafio de servir 24 horas por dia, muitas vezes à luz de poucas velas entre uma falha e outra da energia geral, não dispondo de uma simples fonte alternativa.

Tem rosto moderno mediano, o que só pode ter contribuído para maior fluxo de clientes. É um restaurante pequeno e fechado, rendido a essas irreverências ocidentais de igualdade entre classes, onde o cliente chega, como qualquer outro, serve a variedade que der, põe o bolso a falar com a balança, e ocupa a mesa. Só depois vem o garçon para o que se quer beber.

Estava lá eu a almoçar em tempos. Às tantas, entra o vigoroso septuagenário com duas raparigas, que tanto davam para meretrizes como para netas suas com défice de decência no trajo apenas. Ocupam uma mesa ao fundo, num canto entristecido pelos vidros fumados, onde poisam objectos irrelevantes como sinal de demarcação territorial. Luwawa é um farfalhoso intelectual Bantu, devolvido pela trama da história à sua cidade natal. Bons filhos sempre tornam à casa, os não tão bons também, há quem também o diga, e até mais previsíveis.

Há histórias de vida que revelam fatalidade, quando a personalidade não se dissocia da etimologia do nome atribuído pelos progenitores, ou o adoptado do xará. Luwawa, por falar nisso, é uma espécie vegetal odiada pelo seu fedor, o que, entretanto, não justifica que os Ovimbundu torcessem, à partida, o nariz a toda espécie humana com tal nome.

Velho Luwawa, de sorrisos largos como o casaco e a gravata, é um acontecimento em pessoa, um poço sem fundo que ninguém quer ter contra si. Talvez fosse por isso que, em se tratando de self-service, foi-lhe dada, e por arrasto às muchachas, uma deferência incomum: serviu, pagou e deixou os três pratos no balcão da balança, para serem pelo pessoal de serviço levados à sua mesa.

Bem, agora vou andando, que conheço ateus, conheço cristãos. Para ambos, é sagrada a hora da refeição.

Gociante Patissa, aeroporto 17 de Setembro, Benguela 2 Agosto 2012
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