quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Apontamentos: Recados implícitos na atribuição de nomes a animais entre os Ovimbundu

Gociante Patissa, Benguela (ensaio publicado via Jornal Cultura, edição como ilustra a foto)

Parte o presente exercício de dois relatos de um casal que revelava semelhanças num gesto das respectivas mães, os quais, vistos além da coincidência, fornecem matéria antropológica. Trataremos a mãe do marido por Njali-A e a da esposa por Njali-B, correspondendo “onjali” ou “njali” a pai/mãe, tutor/a. O que as separam são uma década e cerca de 600 km. Njali-A vivia em Kutenda, município da Tchicomba, na Huila, e o gesto deu-se na década de 1970. Por sua vez, njali-B vivia no Monte-Belo, município do Bocoio, em Benguela, e sua acção deu-se na década de 1980.

Njali-A e njali-B têm em comum o papel de “ndona yukulu” ou “ukãi watete”, esposa mais-velha ou primeira mulher, traduzindo literalmente. É o estatuto social dado às primeiras esposas, em contextos de poligamia, onde, independentemente da idade, das demais “sepakãi” (rivais) a sociedade espera uma postura de “irmãs mais-novas”. 

Os Ovimbundu são o grupo etnolinguístico de origem Bantu que predomina no centro e sul de Angola, em seis das 18 províncias: Kwanza-Sul, Benguela e Namibe (costa), Bié, Huambo e Huila (planalto centro e sul). Representam 1/3 da população, num país com 16 milhões de habitantes, e cerca de oito grupos de matriz Bantu, sem esquecer os Khoisan, pré Bantu, e ainda os de ascendência ocidental.

Para Fernandes & Ntondo (2002), citados em Martinho Kavaya (2006: 54), formam o grupo etnolinguístico, Ovimbundu, os va Viye, Mbalundu, Sele, Sumbi, Mbwei, Vatchisandji, Lumbu, Vandombe, Vahanya, Vanganda, Vatchiyaka, Wambu, Sambu, Kakonda, Tchicuma, e este grupo corresponde ao maior étnolinguístico angolano (acima de 4.500.000 pessoas) e comunica-se na língua Umbundu.

Chama atenção, entretanto, a proximidade estatística entre o trabalho de Fernandes & Tondo e o do estudioso António Correia (2012), como podemos verificar num trecho do seu Blogue: “Distinguem-se pelo menos 18 grupos Ovimbundu diferentes: Mbailundu, Vyié, Wambu, Ngalangui, Quibulos, Ndulu, Quinolos, Kalukembes, Sambu, Kakonda, Quitatos, Sele, Ambuis, Hanhas, Gandas, Chikuma, Ndombe, Lumbu. É o maior grupo etnolinguístico angolano (cerca de 4.970.000 pessoas)”.

Até que sejam conhecidos os resultados do Censo Populacional em curso, uma iniciativa governamental que visa contornar o facto de os dados oficiais datarem de há quatro décadas, toda a estatística neste sentido está sujeita ao benefício da dúvida. Entretanto, estamos confortáveis em acrescentar que nem sempre o número de falantes é indicador de etnia, um fenómeno que podemos atribuir a dois factores: (a) a motricidade das comunidades de trabalhadores do CFB (Caminho de Ferro de Benguela), do Lobito (Benguela, litoral centro) ao Luau (Moxico, extremo leste e de predominância Lunda Cokwe); (b) o êxodo para as cidades e/ou zonas mais seguras durante as três décadas de guerra civil, onde poderá contar o facto de a UNITA (rebelião armada) ter imposto o Umbundu como símbolo de afirmação patriótica nas zonas sob seu domínio.

As principais decisões do lar entre os Ovimbundu, à semelhança de vários outros grupos de Origem Bantu, reservam-se ao marido. Uma dessas é referente à atribuição do nome ao recém-nascido, como aliás o realça Avelino Sayango (1997: 8): “É o pai, e não a mãe, que tem a prioridade na escolha de um membro da sua família para ser o sando (chará) do primeiro bebé, quer se trate dum menino ou duma menina”.

Este exemplo é apenas uma amostra daquilo que são os aspectos decorrentes da atribuição de papéis com base no género em culturas de pendor “machista”, onde a participação da mulher na tomada de decisões é (aparentemente) nula, pois este ser secundário tem subtilezas para vincar posição. Falaríamos por exemplo da influência que as mulheres vêm tendo sobre as mais temidas figuras e tramas da humanidade.

No contexto das comunidades rurais que abordamos, a maioria das mulheres dedicava-se ao cultivo e lida doméstica, salvo poucas excepções para confirmar a regra. Eram, então, as que tinham formação elementar para o professorado ou enfermagem. O mesmo se aplica aos homens, no cultivo e na caça, excepto uns poucos na função pública, com ofício, ou então para-militares. Njali-A era esposa de motorista hospitalar e Njali-B de funcionário administrativo. Seus maridos eram de concentrar as várias esposas num mesmo espaço, chamemos-lhe de quintal, e com isso uma convivência intensa entre as “irmãs” rivais. Até aos dias de hoje, há quem o pratique nos centros urbanos, o que é culturalmente normal, mas nem por isso fácil de gerir.

Njali-A adoptou um cão, a quem atribuiu o nome de “Notole”. Njali-B intitulou o seu cão “Cohinla”. A palavra é ícone, o que seria pleonasmo referir, já que é sobre o adágio que assentam os nomes dos Bantu. Segundo Francisco Xavier Yambo (2003: 23), o ocimbundu acredita na interacção e correlação de forças entre todos os seres viventes. Outro grupo de nomes, o mais variado, vai das circunstâncias palpáveis em que a criança nasce à preocupação de perpetuar a memória deste ou daquele ente-querido.

Ora, tirando proveito deste paradigma, e na aparente banalidade do direito de dar nome a um animal doméstico, Njali-A e Njali-B vincam posições: Notole, ndikasi vesaila; nate ciwa, ndikasi lo kimbo lyetu” (choca-me bem, sou pinto dentro do ovo; trata-me bem, que faço falta à terra de onde venho).Cohinlã mange calwa” (é muito o que se esconde no silêncio de mulher madura). E assim apresentam, não só um protesto passivo-agressivo aos maridos, mas também uma denúncia à comunidade sobre o que lhes intriga da poligamia, durante o ciclo de vida do cão, qual sino diário.

Numa perspectiva inversa, e reportando-nos ainda à comuna do Monte-Belo, vem outro exemplo: “Kanjila-Komange” foi a alcunha que certo homem chamou para si.Kanjila komange kakwete lapa katekula, lapa kasumbiwa” (por mais insignificante que possa parecer, o passarinho-mãe tem um ninho a sustentar e exercer autoridade).

Podemos concluir que não andará muito longe da verdade a hipótese de que a atribuição de nomes proverbiais a animais como forma de protesto é prática antiga entre os Ovimbundu e provavelmente de outros povos Bantu, dada a semelhança entre Njali-A e Njali-B, que vivem em épocas e lugares distantes. Não nos parece, por outro lado, que seja ao acaso também que um homem adoptou a alcunha para reclamar respeito.

Obras Citadas

Correia, A. (2012, Abril 25). O PENSAR ANTROPOLÓGICO ANGOLANO. Blogue de António Correia , pp. http://jornalistacorreia.blogspot.com/2012/04/o-pensar-antropologico-angolano.html.
Kavaya, M. (2006). EDUCAÇÃO, CULTURA E CULTURA DO ‘AMÉM’: Diálogos do Ondjango com Freire em Ganda / Benguela / ANGOLA. Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título Mestre em Educação (p. 54). Rio Sul, Brasil: Pelotas.
Sayango, A. (1997). O MEU PAI (Vol. 1). Luanda, Angola, Angola: Barquinho – Livraria Evangélica.
Yambo, X. F. (2003). PEQUENO DICIONÁRIO ANTROPONÍMICO UMBUNDU. Luanda, Angola: Editorial Nzila.
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