sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Crónica: Se os rios fizessem inversão de marcha

O olhar é como o rio. Ambos alimentam, mas sua natureza é rota de sentido único. Um vai da íris ao objecto, outro da nascente à foz. Os tempos também. À medida que seguem, vão nutrindo a vegetação, ou a esperança e a nostalgia. Nem inovo eu a fórmula, nem ela a mim. A humanidade é toda, no final das contas, uma repetição.

Da sociedade civil guardo memórias, mais aquelas da ingenuidade. Das metas, dos planos, das estratégias. Tudo afinal mera utopia, olhando em reverso, tal como a vontade de mudar o mundo, ou parte dele, para melhor que o senso comum permitisse. O desemprego, o inconformismo e a criatividade lançaram muitos ao sector informal, comigo deu-se em 1999, e com isso a oportunidade de pensar para lá do discurso oficial, como prevê o exercício da cidadania. Os seminários e capacitações são outros ganhos. Depois que se sai, resta aquela ambivalência.

No passado mês de Julho, fui convidado para a recepção na residência do Embaixador Americano em Luanda, Christopher McMullen, que confraternizou com ex-bolseiros e participantes de programas de intercâmbio suportados pelo seu governo. Porque em 2010, integrei o grupo de Líderes Associativos Juvenis que visitou Washington, Oregon, Utah e Florida, em nome de uma ONG angolana, de que sou co-fundador (já não estou no activo, por questões de integridade).

Noutra época, teria telefonado à Ilda, da casa de passagem da ADRA, por detrás do Xamavo. Mas a experiência na aviação ensina a tratar das reservas pessoalmente. Vencida a previsão de aterragem, a tripulação do Boeing anunciava pista congestionada. Sobrevoaríamos a capital por mais 20 minutos. Passavam das 16H00 e o compromisso seria duas horas mais tarde. Uma vez em terra, um candongueiro resolve a falta de protocolo. Bato à porta, aperto a campainha, mas tarda a resposta. Depois sai um senhor, estrangeiro talvez, com má notícia: aquilo há coisa de um ano que deixou de ser hospedaria.

Uma hora me separa do evento, e lá estou eu pelas ruas do São Paulo. Alameda Hotel é a paragem a seguir. Atende-me um senhor de meia-idade, refastelado no sofá da recepção, que talvez não merecesse o nome, a julgar pela mórbida luz e mofo indisfarçável. Diz-me que há cerca de três anos que andam encerrados para obras (nada visíveis). Abre excepção, provavelmente das milhares que se vêm abrindo ao longo do defeso oficial a quem quer cama para coisas rápidas. Digo que não estou acompanhado. Ah, se fosse assim, diz-me, solícito, teria que sair cedo, 6H00 da manhã o mais tardar. Cheira-me a insegurança, mas disfarço. Retiro-me apenas com a eufemista promessa de voltar. No Quinaxixe encontro um residencial em jeito de bunker, pelo qual não pagaria os meus 10 mil kwanzas, se não andasse contra o tempo.

No final tudo se arranja e a recepção é enriquecedora, acima de tudo pela interacção com personalidades dos mais diversos sectores. Encosto-me aos historiadores, Simão Souindoula e Américo Kunonoca, ao lado dos jornalistas, Lilas Orlov e Nelson Rosa. Como que a beber da fonte, ouço para aprender e tirar dúvidas sobre um pouco de tudo e sobre as implicações dos derrubes de Muamar Kadafi e Laurent Gbagbó.

O nosso mundo parece-se um pouco com o mar. Bem podia estar calmo, de tanto que tem de recursos e espaço, mas anda às ondas… talvez por ter nas ondas a forma de tomar o seu banho.

Gociante Patissa, Aeroporto da Catumbela, 21 Outubro 2011
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