terça-feira, 8 de abril de 2008

(Conto): Há coisas que uma carta não consegue dizer (*)

Através da Cruz Vermelha, Amadeu recebeu a carta do filho desaparecido há quinze anos, menino de catorze anos na altura. Estava na tropa e um dia voltaria. Era somente desta forma que os limites da esperança os permitiram pensar durante a ausência.

“Queridos pais, espero que estejam bem. Finalmente a guerra acabou e estou contente porque não dava mais (…) quero voltar à casa já, mas preciso da vossa aceitação. Tenho um amigo diminuído físico dos pés e braços, que muito me ajudou e não tem onde ficar. Só volto se me permitirem trazê-lo”.

A emoção é forte ao abrir a carta. Tanta era a ânsia de ver a família unida! Mas a ideia do amigo diminuído físico era um desafio difícil. E na carta:
“Querido filho, não imaginas como nos alegra ouvir de ti. Venha tão logo quanto possas. Mas em relação ao seu amigo sem braços, nem pernas, achamos que o melhor seria encontrar uma instituição apropriada, uma vez que seria um fardo difícil para nós”.
Era para os pais uma injustiça do filho ao estipular tão elevado preço. Até que um dia o telemóvel vibra:
– Alô, Senhor Amadeu?
– Sim. Quem fala?
– Azevedo, um dos amigos de Wilson. Comunicamos que o vosso filho faleceu… morte súbita, esta manhã.
– Morte súbita, como? Possas, pá! Você se enganou no número, não era para mim a chamada! O Wilson não vai morrer tão cedo. NÃO PODE!
– Não é fácil nem agrada ser eu a lhe transmitir essa notícia. Mas o outro nos deixou mesmo. É como já disse…
– Mas morreu como? Porque até aqui não disseste nada, pá!
– A história completa o paizinho vai saber quando vier cá...

Surge uma pausa. As forças estão distante para a pergunta que se impõe. Um suspiro devolve o fôlego ao receptor da mensagem, que também não conhece quem a transmite. A menos de um metro está a esposa, que acompanha o anúncio da má nova com o telefone na função mão-livre. Também a lacrimejar, mas de certa forma mais forte do que o marido. Apanhada sentada pôs-se de pé, enquanto o marido procurou de imediato sentar-se.

– Mas “cá” aonde, se é que posso saber? Porque espero há oito meses para saber onde está meu próprio filho – desabafa perdido na velocidade dos acontecimentos.
– Bem, se ele nunca disse, é uma questão que a consciência me obriga respeitar. Pela consideração que tenho pela boa pessoa que o seu filho foi e também porque há coisas que uma carta não consegue dizer… Estamos no Namibe.
– O que quer dizer com isso?
– Nada de novo. Quando nos encontrarmos vamos conversar mais e as coisas estarão mais claras.


Que quebra-cabeças tão doloroso! O filho evitou sempre conversas susceptíveis de dar pistas do possível nome do bairro, cidade, ou coisa do género. “Quando for o momento, vos direi. Isso também não tem importância porque não ficarei aqui por muito tempo”, argumentava com insistência sem convencer os pais. Este pequeno detalhe estava condicionado à aceitação do amigo diminuído físico pelos pais, negociação de mais de oito meses.

Era como se as horas girassem ao contrário. Uma sensação estranha tomava conta dos seus sentidos. Não era para menos! O filho morre mesmo antes do tão esperado reencontro, ao fim de quinze anos sem paradeiro. O quarto dele continuava ocupado pelas suas roupas, brinquedos, fotografias e a pela presença espiritual. Era como se o tempo tivesse parado, muito mais porque três abortos impediram a mãe de voltar a gerar outro filho.

Passada uma hora estava o casal no seu Jeep em direcção ao Namibe. Já avisados, os familiares mais próximos aguardavam com ansiedade a realização do óbito em Benguela, por aí dentro de uma semana. A mulher pergunta ao marido se vai conseguir fazer isso. Ele diz que sim, nem que tenha que ser a última vez ao volante.

As estradas em reconstrução facilitam a viagem, de uma província à outra. Seria de esgotar a conversa, mas entre marido e mulher até o mais banal dos temas faz sentido.
A perda fez da senhora um pouquinho mais velha, humor a baixo de zero. Olha-a da testa a baixo até à região dos seios e imagina os tempos de mocidade em que eram a mais bela das paisagens, o que nem mesmo o nascimento de Wilson desfez. Em reacção acontece a erecção, tal como se dava há anos. “Que sensação mais estranha agora!”, pensa em segredo enquanto encolhe as pernas como medida para desencorajar o membro viril, num misto de culpa e de alegria – embora não seja o momento apropriado, é sempre agradável o despertar da tensão sexual quando o casamento leva já décadas de vida e monotonia.
– O que foi? – pergunta ela.
– Nada de especial – minimiza o marido –. Por que pergunta?
– Senti-te algo distante.
– Não liga. Deve ser dessa desgraça sobre os nossos ombros.


Uma vez superada a Serra da Leba, está-se às portas do Namibe. Lá foram recebidos por um grupo de jovens. Foi então que descobriram que Wilson suicidou-se ao notar que seria um fardo pesado para os pais. Tinha perdido as pernas e os braços na guerra. Vivia do subsídio que recebia do exército e sobretudo da camaradagem dos ex-companheiros de guerra. Esperava contar aos pais a verdadeira história, que, na sua forma de entender, não se conseguiria explicar numa carta.

Moral da estória: as cartas nunca deveriam substituir o contacto pessoal na resolução dos problemas.


Por: Gociante Patissa (Inspirado num enigma que circulou na Internet)
(*) Publicado na Edição de Setembro/07 do Boletim informativo educativo e cultural "A voz do Olho"
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