domingo, 3 de março de 2024
A cara que te acontece quando pensas que amanhã é já segunda-feira e as guerras no mundo ainda não se lembraram de cessar. Tanta BALA no lugar de bola, tanto NÃO no lugar do pão, nossa espécie humana tão prendada a cultivar conflitos e impor interesses por tudo e por nada. Tanto evangelho, doutrina, crença e deuses para tão pouco entendimento no mundo. É porque nós, os loucos na caverna, cremos na PAZ, ainda.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024
domingo, 21 de janeiro de 2024
O MARKETING É UMA MENTIRA (crónica de hoje nas páginas do Jornal de Angola, coluna Carta de Lisboa
Crónica | O MARKETING É UMA MENTIRA
O que vai querer para sobremesa? Pergunta-me o homem da facturação na copa do Museu Gulbenkian. Uma fruta. Se não houver melão, fico com o mamão, se faz favor. PAPAIA. Rectifica prontamente o homem, entre o simpático e o professoral. É PAPAIA, reforça suavemente enérgico, não vá outro cliente na fila confundir os termos, cuja diferença, se alguma, para já não enuncia. Agradeço-lhe e sorrio maroto, como quem nunca se engasgou ao degustar mamão contra papaia ou ananás contra abacaxi, diga-se.
E como até vivemos a era da lucidez de auto-ajudas, fico a conjecturar que raio de gatilho faria o substantivo mamão espoletar no rol de memórias, quiçá dos mais malandros e fisiológicos superlativos na cabeça do homem. Mas deixemos isso para lá, farto que anda o mundo de nos provar o quão útil é a produção em série de coaches e motivacionais e etc. Tanta sabedoria a granel, e enquanto isso nada contém as guerras, como se vê.
A fila da copa no museu tem sempre mais olhos que barriga no que respeita à sua cadência. Turistas e nómadas digitais fazem a paisagem. De escritório às costas que atende pelo nome de mochila e internet e fome no pico, aguardo a vez. Conto pelos dedos da mão, ou diria antes pelos dentes da minha boca, o tempo de espera, que por sua vez não cabe na métrica. Aqui o tempo é só isso mesmo (não chega a ser dinheiro, pelo menos não como proveito), não se detém na boa-vontade do pessoal de serviço, que tem de se desdobrar com interpretações e traduções, tanto babel circulando na metrópole, os que ficam e os que nunca mais voltamos a ver. A única certeza dos encontros é a data.
A propósito, enfio aqui um paralelo com algo que me chamou atenção há dias na condição de telespectador e estudioso de ciências da comunicação, simpatizante da sociologia e de fichas técnicas. Estava eu de óculos progressivos montados e tudo à espera da ficha técnica de um programa da RTP, quando dou por mim quase tonto e frustrado. Tão veloz era o desfile da ficha técnica que não se conseguia mesmo decifrar a sua composição. Os nomes estavam lá, porém mais valia o oposto disso. A única coisa de nítida, porque a última, era 2023. Se não é para decifrar os nomes, o que justifica então que lá estejam?
Esse pormenor aparentemente insignificante, digo aparentemente atendendo que em teoria tudo comunica, parece dizer muito sobre o rumo para o qual as relações interpessoais caminham na era digital, muito dada a pressas e ao impessoal. Temos então um modelo cada vez mais instrumental de contar histórias. Em Angola mesmo intrigava-me ouvir peças jornalísticas de rádio e televisão, aquele critério editorial de omitir o nome do interlocutor sem justificação, ou narrações do tipo este cidadão fez isto e aquilo, reduzindo a humanidade a uma estrutura fisionómica de anonimato imposto.
Aos corredores da Gulbenkian volto inúmeras vezes, tal é a variedade de atractivos da sua pauta e paisagem, da biblioteca aos palcos. O verão chega a ser a época mais voltada ao pop juvenil, com uma programação que se esforça a mitigar as barreiras que atravessam a história de Portugal na sua relação com as colónias. Contudo, o tronco principal da acção cultural, este, é voltado à faixa mais vivida, a da música clássica.
É um microcosmos de uma geração que faz dali um refúgio existencial, como quem lança o anzol às profundidades do oceano à pesca de motivos. Esse motivo por vezes pode ser só mesmo o aconchego furtivo do ar condicionado, quando se torna insuportável o interior da maioria de moradias antigas, ao longo dos quatro meses de verão.
Nas poltronas rubras do corredor do bengaleiro monto o arsenal de nómada digital, o iPad devidamente ligado à net de dados, auscultadores para reuniões virtuais e um punhado de livros (de quando em vez furtamos horas ao patrão para os atrasados académicos).
Por mim passam calados, olhar desviado com frequência reincidente, homens e mulheres, de jovens a adultos. Chegam ao fim do corredor e vêm-se obrigados a retornar, um tanto aflitos. Eu sei o que procuram. Sei também que não o acharão sem perguntar, visto que a arquitectura à meia-luz não facilita achar a sinaléctica. Sem saudar, perguntam onde fica a casa e eu indico, ora em português, ora em inglês. O WC é mesmo ali, é só virar à direita, ao que respondem obrigado. A entrada do bengaleiro é também a das casas de banho. Aliviam-se e vão à sua vida, a saudação não é mandatória, aliás, nem nos vimos.
Uma dessas almas traz consigo caixa de papelão a tira-colo e um daqueles sacos de panos caqui, que na banda até gostamos também de fingir que utilizamos, a pessoa até recebe em eventos e quê e tal para acabarem atirados, nem já para saco de pão. A mulher, 50 e poucos, cumpre o roteiro mudo, batido, mas o retorno é certo. Cumprida a escala técnica de atender a natureza, breve, procura saber a agenda. Peço uns segundos para espreitar o site. Cabe a mim fazê-lo, que ela usa telefone de botões. São 15h. De espectáculo mais próximo, só mesmo às 19h. Não dá, o meu último autocarro sai às 18h30.
Moro do outro lado do rio, acrescenta a mulher cuja jornada a Lisboa nesse dia se resumia a dois grandes ponderáveis. Um era tratar da saúde do seu bicho de estimação, um gato, motivo da recolha das caixas de papelão. O outro passava por captar um melhor ângulo da exposição que visitara dias antes. Mas não há nada a fazer, a exposição já ali não se encontrava patente. Desenrola-se o papo de dois aficcionados por fotografia feita com máquinas fotográficas DSLR, aquele deleite de ajustar os parâmetros de abertura, velocidade e sensibilidade do sensor, coisa que o digital nem sempre sabe.
É mesmo! O digital tende a acelerar resultados, não dando a dominar os processos. É o que se vê, um mundo cada vez mais preso aos aplicativos e frio para coisas que muito acrescentam ao contacto humano, isso somos nós no papo conspirativo. Ela indaga sobre o que me traz a Portugal, ao que lhe respondo curso de mestrado. Ah sim? Sim. A questão é que me licenciei em linguística por ser o que mais se aproximava à comunicação e à literatura, na ausência da oferta em jornalismo na província de onde venho.
Conta-me ela que em jovem cultivou uma fulgurante paixão pelo jornalismo e exerceu, até perceber que afinal gostava de coisas menos dependentes dos interesses dos patrões. Trocaria os microfones pela sala de aulas, multiplicando o saber a bordo da filosofia. Não podia, por isso mesmo, deixar de abominar o assalto ao bom-senso por derivas populistas. Pior ainda é a onda de supressão de cursos tão úteis à formação do pensamento crítico como as filosofias e as sociologias, já sem falar de sistemas de aceleração que mutilam.
Sendo formado em ciências da educação, digo-lhe quão sintonizado à apreensão dela estou. E conversa vai, conversa vem, menciono a má notícia da descontinuação do curso de sociologia numa das unidades orgânicas da maior universidade estatal do meu país, precisamente por registar fraca adesão de candidatos, em se tratando de regime pós-laboral que opera na base da propina para a remuneração do corpo docente.
Como pode o mundo crer que vá caminhar saudável e consistente, dar sequência ao legado cultural e conquistas até aqui somadas, com a aposta em programas e currículos que semeiam o imediatismo e a superficialidade? Questões de retórica que prosseguem até a minha interlocutora atirar: E essa coisa do marketing, já viu como consome a juventude?! É só vender, vender. Eu não gosto nada. O marketing é uma mentira!!!
De facto, como estudante da coisa devo concordar em parte. O marketing chega a ser uma rampa de ilusões e egos esteticamente bem vendidos. Oh, mas disseste (posso tratar-lhe por tu? – Sim, claro) que estavas em ciências da comunicação. E estou, escolhi comunicação, marketing e publicidade porque trabalho no ramo. No entanto a minha escola é, como disse, ligada à educação, artes e desenvolvimento comunitário pelas ONG.
Gosto de causas sociais, diz a senhora, que é activista pelo bem-estar dos animais. Passa a ser este o tema, a ecologia e vida saudável. Mas o tempo, o mesmo que um dia considerei não ter pernas, pois seriam curtas ou longas demais, fazia das suas. A senhora abre a bolsa para localizar o bloco de notas onde tem o horário dos autocarros intermunicipais. O aplicativo não torna a coisa mais prática? Provoco eu. Livre-me dos aplicativos, por amor de Deus!, retruca. Não quero ser comandada por telefones, utilizo apenas para o essencial, fazer chamadas e enviar SMS, e mesmo assim já é muito.
Feitas as despedidas, solicitei-lhe um ponto de ordem para saber como se chamava, o que revelou com ares desprevenidos, como se fosse natural conversarmos mais de uma hora, trocar impressões pessoais sobre o mundo que queremos mais humano... e acabar tudo numa ficha técnica sem nomes. Bem, se calhar bastaria a data. Mas sou angolano.
Gociante Patissa
Lisboa, 01 Janeiro 2024
segunda-feira, 8 de janeiro de 2024
JOAQUINA KALUKANGO - ACTRIZ E CANTORA AMERICANA COM COSTELA UMBUNDU OU SEMELHANÇAS APENAS?
Saltou-me à vista o nome da actriz e cantora. JOAQUINA KALUKANGO. Mbi wetu? Mbi ocimbundu (Não será "nossa"? Não será de matriz umbundu?) A explicação é que a cultura umbundu (para não generalizar na família Bantu) gira muito em torno do milho, que é transformado em uma variedade de comeres e beberes. OLUKANGO (milho torrado, algo perto de pipocas) faz parte das memórias de cada integrante desse grupo etnolinguístico que representa(va) 1/3 da população de Angola, predominante no centro e sul, muito dado à agricultura e também à caça. Já o prefixo KA, dependendo do contexto, pode indicar diminutivo, assim como pode indicar característica. Assim, KALUKANGO seria alguém (neste caso, atenpassado) que muito aprecia(va) de consumir este quitute tão popular e animado que é OLUKANGO, de resto um elemento também de socialização, à parte a trabalheira de ir bebendo muita água, tal é a sede que causa
quarta-feira, 3 de janeiro de 2024
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
Poema inédito | POR VEZES BENGUELA
Poema inédito | POR VEZES BENGUELA
terça-feira, 19 de dezembro de 2023
DAS MELHORES LEITURAS DE 2023: "KWASHALA BLUES", DE JESSEMUSSE CACINDA
Acabei de ler o livro "Kwashala Blues" (Ethale Publishing, 2023), crónicas do nosso mano moçambicano
Jessemusse Cacinda, autor e editor que conheci em Outubro passado quando participava no festival de artes organizado pelo Museu de Lamego. Quanto a concluir a leitura da sua obra de 96 páginas, podia, em boa verdade, tê-lo feito de uma só assentada, mas logo nas primeiras propostas da obra percebi que tinha de optar por um ritmo um tanto tântrico, de modo a melhor degustar o passeio pela sociocultura de Moçambique, trilhar a sua geografia pela caneta da voz do narrador, uma realidade que, de resto e por força das circunstâncias históricas, muito se assemelha à da nossa querida Angola. O humor, a sátira e outros recursos estilísticos, sem mencionar uma série de reviravoltas que acompanham algumas das tramas, condimentam o prazer da leitura, onde realidade e ficção se entrelaçam na perspectiva do leitor. Tendo como pretexto a ocorrência da morte do pai, dá-se a viagem de regresso à terra natal, o que abre espaço ao revisitar de memórias de feridas mal sicatrizadas no núcleo familiar mais restrito, mas também no tecido social, onde a tradição, a política, a filosofia e a história fazem o pano de fundo. O encadeamento temático das onze crónicas da obra confere à mesma uma proximidade da novela, no caso novela com entrecortes e difusão de núcleos. De entre as várias coisas pujantes sob o ponto de vista da dimensão estética da obra, sublinho a abertura da crónica O Bilhete de Carlos Sapato: "No dia da sua morte, Carlos Sapato teve direito a uma manhã de sexo" (pág. 21). Quem não gostaria, não é? Outro traço de fina ironia a destacar mora na crónica Made in Namicopo: "O meu pai veio a seguir: imóvel, com o corpo pendurado numa simples barbicha e o com ar de dono de si mesmo" (pág. 41). O resto não conto, cada qual com a sua leitura e os seus prazeres. E pronto, com a vossa licença, retiro-me a ver se passo a experimentar pela primeira vez a sensação auditiva do Kwashala, género musical (não conhecia, confesso). Se for tão agradável como se nos deu a ler e dançar ao ritmo da escrita, ainda melhor.sexta-feira, 10 de novembro de 2023
À procura de Editora que aposte no volume 2 de O APITO QUE NÃO SE OUVIU, colectânea de crónicas de um blogger, desta vez para assinalar 18 anos de produção regular no meu autoral www.angodebates.blogspot.com, com textos surgidos entre 2014 e 2024.
O primeiro volume, que saiu sob chancela da União dos Escritores Angolanos (2015) reunia as crónicas mais representativas produzidas ao longo de 8 anos, a contar de 2006 quando o Blog foi criado. Parece ontem mas já são 18 anos ininterruptos dessa plataforma online lançada com a designação Angola, Debates & Ideias e que tem sido responsável pelo meu crescimento como cidadão, artista e académico, sendo que algumas das crónicas chegaram a ser estampadas em páginas de diversos jornais e revistas entre impressos e digitais.Obrigado
patissagociante@yahoo.com
sábado, 4 de novembro de 2023
quinta-feira, 2 de novembro de 2023
Primeiro bolo para o mano Zeca que não vem
Existiu um homem chamado Zeca. Zecas há muitos, dirão. Errado! Zeca com a quarta-classe, filho de
primos, pele da cor de tijolo, carapinha de Khoisan, dono de uma vida tonificada no ofício da pesca, torneada pelas ondas do mar desértico traçado a nado de braçadas, esse, não dá direito a duplicados. Por acaso ia escrever muito mais neste feriado de celebrar cada um daqueles nossos entes amados, cujo lugar se mantém vago desde o dia que se mudaram para o outro mundo. Neste dia dos finados, povoa a memória o mano Zeca Nguenhe Víctor, primeiro dos filhos do meu pai, uma alma singular que involuntariamente nos enchia de pânico ao repousar a sua granada na cabeceira quando voltasse do interior, na vigência da guerra naqueles anos 90 (mal vai o mundo que diverge para a bala o cêntimo do pão e do livro). Fiz-te até um bolo, mano, tentei, pela primeira vez. Não ficou é à altura dos teus gostos. “O meu bolo preferido é o que sai massudo”, sempre dizias.
Gociante Patissa | L. | 02 Novembro 2023 | www.angodebates.blogspot.com
segunda-feira, 9 de outubro de 2023
Em 2013 tive a oportunidade de pisar o solo de Israel e da Palestina, conviver com os povos de ambos os lados e captar de ambos os lados a expressão da sua cultura, valores mas também das mágoas que perduram do conflito de "primos". Triste que ainda hoje as mães tenham de chorar o pranto profundo de quem perde filhos, é triste que a guerra não morra
quarta-feira, 4 de outubro de 2023
terça-feira, 3 de outubro de 2023
Agenda: Este sábado, dia 7, na Universidade Lusófona Lisboa
Sempre que posso doar-me, dou corpo ao voluntariado (geralmente em coisa de ideias, artes e letras). Das mais recentes experiências esta foi como integrante do painel de júri na selecção de textos de autores africanos (maioritariamente Guiné Bissau), que vão dar corpo à segunda edição da colectânea de contos, crónicas e poemas intitulada #EcritAfricando, da iniciativa da ONG portuguesa Ser Mais Valia (a convite da escritora Aida Batista, que foi Leitora do Instituto em Camões Benguela, que foi minha professora de português no curso Básico de jornalismo, há 18 anos). O lançamento acontece este sábado, 7 de Outubro, na Universidade Lusófona, Lisboa. #gociante_patissa #gociantepatissa #sermaisvalia #escritafricando
quinta-feira, 28 de setembro de 2023
sábado, 23 de setembro de 2023
Poema inédito | OS PAIS JANELAM (*)
Poema inédito | OS PAIS JANELAM (*)
Os pais janelam,
pais nossos de cada um
Janelas pelas quais
Cá andamos
O janelar pelo qual
Ainda cá moram
Depois que partem
Os pais janelam
Para não portarem
Portas seriam largas
E de larga já nos basta
a tábua
Que mal nasce a semente
Bem cabem na janela
Mãe e pai
Justa medida
Que nos cabe
O apertado abraço
A festinha tatuada na derme
O fumegante manjar à mesa
E por este janelar
moldura da íris umbilical
Ardente saudade futuro polido
Qual dedo anelar
Janelas brisam por dentro
Premente, meu pai, oh mãe
No achado da memória
É das janelas o trinco fingido
Gociante Patissa | L. | 23 Setembro 2023 | www.angodebates.blogspot.com
(*) à memória de Víctor Manuel Patissa, 1946-2001
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
NÃO TEM PERNAS O TEMPO (Extractos do primeiro capítulo da novela)
Os que odeiam a cidade de Luanda são muitos, e têm razão. Os que a amam não são poucos nem estão errados. Aqueles a quem Luanda não aquece nem arrefece são vários, e estão igualmente certos. É que a capital é um eterno modelo de contrastes, assim entende Man’Toy. Ele, inclusive, não pensou duas vezes quando, por coincidência, saiu a carta de condução e surgiu o primeiro emprego, o de motorista funerário.
domingo, 30 de julho de 2023
PhD EM CIÊNCIAS TENTADAS OU AS FÉRIAS DO MESTRE DAS IDADES | crónica semanal no Jornal de Angola em "Carta de Lisboa" N.º 09
A segunda premissa do título da crónica que escolhemos para esta edição é da autoria do nosso quinto colega superdotado em ubiquidade, ele que apesar de não aparecer na foto, creiam-me, há de ler estas linhas mais cedo ou mais tarde, o incansável doutor ChatGPT.
Com a conclusão do ano curricular do Mestrado em Comunicação, Marketing e Publicidade, ministrado na língua de Shakespeare pelo Campus da Católica, eleva-se para PhD em Ciências Tentadas o status que sua excelência eu já ostentava há uns anos e por mérito casual próprio.
A luz ao lado do túnel acende-se quatro anos depois, mas o entusiasmo do plano A, uma pós-graduação com acesso ao Mestrado em Ciências da Comunicação pelo qual torramos cinquenta dólares de inscrição, diluía-se na notícia do cancelamento da coisa, por falta de candidatos.
O plano B, dois anos volvidos ou pouco mais ou menos, uma pós-graduação com acesso ao Mestrado em Gestão Estratégica de Recursos Humanos morreria na praia, arranque condicionado pelas mesmas razões. A propina afrontava o soldo do funcionário público.
A terceira tentativa da mesma instituição de matriz portuguesa de formação à distância em modelo despachante de cabotagem, chamemos-lhe plano C, desta vez aglutinando finanças e RH (já mesmo para tramar o nosso sindicato de péssimos a contas), foi o cortejo de enterro do negócio, com a restruturação do ensino superior a descontinuar o take-away de aulas e canudos.
Não que em 2019, já em Luanda, não perseverasse num mestrado em Gestão Ambiental, no entanto desencorajado pela inconstância burocrática do estabelecimento de ensino e os sucessivos protestos dos veteranos, do tipo guerra avisada...
Foi assim que no uso que lhe confere o instituto da razão perpétua, tendo em conta por sobejo que ninguém fica prejudicado na sua aspiração só porque a geografia da rifa não nada em ofertas; e contando com anuência tácita do planeta Terra, Marte, Unesco, ONU, Opep e afins, sua excelência eu tomou a liberdade de se auto-outorgar o título mais prestigiado de que se tem memória: Mestre (ultimamente PhD convertido) em Ciências Tentadas.
E nem seria novidade para quem já tentou com êxito uma graduação em ciências da própria vida, nomeadamente sobrevivendo em fotografia frustrada, jornalismo abandonado, sociedade civil incubada, soldadura esquecida, construção civil de papel passado nunca iniciada, emigração tenra sonhada, carreira literária lamentada, pela aviação doméstica e tudo… Bem, feito o ligeiro preâmbulo, estamos em condições de seguir os procedimentos de aterragem na pista do ano curricular que atinge o seu limiar neste verão de 2023.
Tudo começou há dois anos com as pesquisas que elegeriam a Universidade Católica de Lisboa como a oferta mais em conta, em termos de curso internacional ministrado inglês em Ciências da Comunicação, vertente de relações públicas, marketing estratégico e publicidade.
Seguiu-se ao crivo documental a entrevista em videoconferência com a coordenadora do curso, com aquele receio que nos invade de a ligação da net nesse dia vir a fazer birra, passível de inviabilizar a aprovação logo na primeira tentativa. Conhecia de cor o prospecto, ou julgava.
O desembarque na capital lusa, o quinto e o mais ingente, dá-se a cinco de Setembro, cinco dias antes da cerimónia de arranque do ano. Daí em diante desenrola-se uma história digna de um filme de drama, com o mwangolê na idade dos seus pais a ser colega de jovens com metade da sua idade. Entre a licenciatura e o agora o hiato é de uma década, entrecortado por cursos intensivos e um de extensão universitária em Comunicação Institucional pela Agostinho Neto, a primeira fornada da sua história e que, ao que tudo indica, morrerá sem papel passado.
Há que recuperar o compasso, à parte a pressão auto-imposta de suar para sacar notas decentes, posto numa realidade onde o mestrado afinal é para putos com média etária de 22, nada pós-laboral como nas Áfricas. Enquanto os colegas conversam animadamente sobre as tendências actuais, os memes e músicas pop, amapiano que não leva piano afinal, a malha de discotecas e festas da vez, a ti já só resta gentilmente acenar com a cabeça, tentando acompanhar o ritmo.
A amizade com quatro colegas com os quais formamos o grupo de estudos é seguramente o ponto alto da jornada académica. Izna é especialista em design e marketing, o Adytia, engenheiro de computação e outro graduado em marketing. Vêm ambos da Índia. Sara, formada em psicologia, vem da Itália. As aventuras, risadas e desafios que enfrentamos juntos só podem ter criado laços duradouros. A diferença de idade foi para mim uma fonte de enriquecimento mútuo. São jovens com potencial enorme de singrar como marketeiros e conquistar mercados.
Quanto a isso, há que assumi-lo, faço parte de uma geração já despojada da ingenuidade necessária para transformar o entusiasmo académico em fé para mudar o mundo nessas lides de comunicação organizacional ou assessorias e afins.Desde logo, quiçá, pela vocação de jornalista, que como reza a lenda é o único profissional que se arrisca a cair em maus lençóis se se puser a actuar na prática literalmente do jeito que os manuais ensinam.
De resto, há um dilema de fundo antropológico que transcende os contornos da ciência para especialistas em comunicação organizacional ou marketeiros, como os queiramos designar, trazendo a coisa para o nosso continente ou para culturas de sistema de valores semelhantes, lá onde a função de conselheiro estratégico é reservada ao mais velho ou ao superior hierárquico, em última análise o decisor e, portanto, sendo estreita a margem para o inverso.
Com a aceleração dos curricula de licenciatura ao abrigo do sistema de Bolonha, as universidades vêm-se obrigadas a privilegiar dinâmicas que puxem por preparar os estudantes para o mercado profissional, tudo girando em torno de trabalhos em grupos, defesas em turma e relatórios. Só não há bela sem senão. Ganha-se na socialização, perde-se no efeito colateral da responsabilização colectiva por parte do avaliador, quando em contexto internacional os estudantes detêm bagagem diferente e podem desalinhar na entrega e na busca de consensos. Nem sempre tratar como iguais elementos diferentes faz justiça.
Mas estes nove meses têm oferecido um amplo laboratório, não só em relação à rapidez com que as tecnologias se apoderam do mundo (a exemplo da inteligência artificial), mas também no jeito como a Europa se fortalece por meio de programas de bolsas e intercâmbio como o Erasmus, cimentando o sentimento de pertença no jovem europeu que circula livre de fronteiras e fixa residência no país que lhe aprouver, sem se submeter a nenhuma procissão migratória.
Dos amigos indianos retive uma lenda que diz muito sobre os interesses estratégicos nacionais. Conta-se que há bwé de anos, certo carteiro via-se aflito para localizar a morada do destinatário da última correspondência daquele dia, que por acaso era um engenheiro. Anda à procura do engenheiro? Não custa. O senhor vá directo, depois vire à esquerda, a seguir à direita, caminho recto meia hora, depois vire... e por aí vai. No entanto, passadas umas boas décadas, esse mesmo carteiro volta a consultar pelas ruas o endereço do engenheiro, ao que lhe respondem: o senhor pode entregar o envelope em qualquer casa, isso anda tudo cheio de engenheiros.
A primeira vez que pisei o solo português foi em 2010 em trânsito para os Estados Unidos da América, país que visitei a convite do Departamento de Estado, servia eu o sector das ONG. Nessa altura voltei de lá com alguma inveja positiva dos nossos irmãos da RDC ao notar o quão presentes eles estavam no mundo académico como docentes. É o que eu gostaria de ver mais dos angolanos, embora sirva de algum consolo a visibilidade que o jornalista Israel Campos, estudante de mestrado, vai tendo, uma espécie de Akwá. No outro dia um professor português, ao me apresentar como angolano, perguntava com entusiasmo se eu conhecia o jovem.
E assim chega ao fim a primeira temporada da Carta de Lisboa, coluna de crónicas que lhe fez companhia aos domingos durante nove edições a fio. As férias chamam. Grato pela sua leitura.
20 Julho 2023